O diretor do Inimigo Público, Luís Pedro Nunes, está “surpreendido” e “estupefacto” com a decisão da PSP em apresentar uma queixa crime contra o jornal "Público", devido ao cartoon que ilustra um agente da polícia entre manifestantes com tochas, numa versão satírica do protesto "nacionalista" que teve lugar no sábado frente à sede da associação SOS Racismo.
À Renascença, Luís Pedro Nunes diz que se sente incomodado por ter de explicar o que é a sátira, e lamenta que não se perceba que “este cartoon não é dirigido à PSP”.
A história que o desenho conta é outra. “Estamos perante uma imagética de algo que aconteceu esta semana, para a retirar e contar uma história da sociedade portuguesa. As pessoas que estão ligadas a manifestações racistas e que se escondem atrás da máscara do André Ventura”, começa por explicar.
Depois pormenoriza que na imagem se veem vários tipos de pessoa, “um que parece um apresentador de televisão das manhãs, e que vai à frente, outro parece um adepto de futebol, e há um que está fardado” [de PSP] “porque temos tido notícias de alguns membros da Polícia, que estiveram ligados a manifestações racistas”.
Na tarde desta sexta-feira, a Polícia de Segurança Pública (PSP) anunciou uma queixa-crime contra o jornal "Público", por causa de uma ilustração que faz a capa do suplemento satírico "Inimigo Público".
"A PSP lamenta a leviandade com que o jornal e o cartoon em questão feriram a boa imagem da instituição e dos polícias que nela servem e protegem os nossos concidadãos", crítica a Polícia.
O diretor do jornal humorista diz que é isto que a sátira faz, ou seja, “vai buscar uma situação e faz uma extrapolação em relação a ela para daí contar uma história”.
Segundo o jornalista, “este é um cartoon sobre o André Ventura”, é “sobre a sociedade portuguesa”.
“Quando ponho lá um adepto de futebol não chamo todos os adeptos de futebol. Se quisermos levar o humor ou a sátira para o que é literal e para a maldade, então temos de acabar com o humor e a sátira”, lamenta.
Luís Pedro Nunes acha ainda absurdo que “numa semana tão intensa de acontecimentos relacionados com a sociedade portuguesa e graves, verdadeiramente graves, a direção nacional da PSP pense que numa sexta-feira à tarde o assunto mais importante que tinha em mãos era um cartoon do Inimigo Público”.
“Li o comunicado e fiquei espantado”, disse, acrescentando que achou curioso que quem iniciou a polémica, ainda durante a manhã, tenha sido “o Movimento Zero a exigir isto a Direção Nacional da PSP”.
O diretor do Inimigo Publico diz que desde 2004, já publicou “milhares de cartoons, centenas e centenas de edições”, e nunca foi processado “porque estamos a falar de sátira”. “Isto é sátira. Este cartoon não é dirigido à PSP”, repete.
Para Luís Pedro Nunes há três hipóteses: “ou o cartoon não funcionou, ou não querem ver o cartoon como ele é, ou a sátira morreu”.
Por fim, diz que nunca pensou estar nesta posição, mas que estamos a viver um ano muito atípico. “Estamos em 2020, é um ano muito estranho, nunca imaginei a ter de explicar um cartoon”.
Durante a tarde desta sexta-feira, em declarações à Renascença, o presidente da Associação Sindical de Profissionais da Polícia, Paulo Rodrigues disse que os polícias devem estar preparados para a crítica e perceber que os cartoons são apenas isso. Mas, ao mesmo tempo, defende que a imagem publicada no "Inimigo Público" desta sexta-feira “magoa” os polícias e que a mensagem que transmite é “injusta”.
A discussão à volta do racismo em Portugal voltou a ganhar força depois do assassinato do ator Bruno Candé, alegadamente por motivações racistas, e de na semana passada um grupo de elementos da extrema-direita relacionados com o movimento "Ordem de Avis-Resistência Portugal" se terem manifestado à frente da sede da SOS Racismo.
Posteriormente, foi enviada uma carta com ameaças a vários elementos de organizações antirracistas e a três deputadas, duas do Bloco de Esquerda e a independente Joacine Katar Moreira.
A PJ e o Ministério Público estão a investigar os contornos do caso.
Ainda na quinta-feira, o Presidente da República (PR), Marcelo Rebelo de Sousa, falando sobre este tema, pediu a todos os democratas que sejam “firmes nos princípios”, mas também "sensatos" na forma como fazem a defesa desses valores. Marcelo alerta para os perigos de dar munições a quem quer aproveitar o tema do racismo para criar um clima de divisão na sociedade portuguesa e capitalizar com ele para promover “fenómenos antissistémicos”.
Também o Governo e alguns partidos da oposição tomaram posições de repúdio e condenação em relação às ameaças que foram feitas pelos grupos de extrema-direita.