Vinte figuras da vida portuguesa, como o antigo Presidente da República António Ramalho Eanes e a mulher Manuela Ramalho Eanes, o antigo ministro Jorge Moreira da Silva e a pianista Maria João Pires, estão a apelar à partilha de testemunhos de casos de abuso sexual ocorridos no seio da Igreja.
A iniciativa foi divulgada esta quinta-feira, dia 4, pela Comissão Independente para o Estudo de Abusos Sexuais contra Crianças na Igreja Católica Portuguesa, liderada pelo pedopsiquiatra Pedro Strecht.
Entre as personalidades que se juntam a este apelo para “dar voz ao silêncio” estão ainda a atriz Beatriz Batarda, o antigo presidente da Cáritas Eugénio Fonseca e a presidente do Instituto de Apoio à Criança, Dulce Rocha.
Leia abaixo alguns dos textos agora divulgados.
António Ramalho Eanes, ex-Presidente da República, e a mulher Manuela Ramalho Eanes
“O crime mais repugnante e mais monstruoso que pode acontecer a uma criança é a violação ou abuso sexual. E é-o sempre. Mas é ainda mais marcante e revoltante quando praticado por alguém próximo, em quem a criança deposita confiança. E é um sofrimento que deixa marcas profundas para sempre. E se apenas mais tarde, talvez na idade adulta, a pessoa se apercebe do mal que lhe foi feito, deve sempre reportar esse crime, denunciá-lo, não só para que o criminoso não repita o mesmo crime com mais crianças, mas, também, porque os criminosos – sobretudo os monstros que abusam de crianças – devem ser punidos, com mão forte, exemplar. E também tratados na área da Psiquiatria. Não podemos aceitar tanta indiferença e sofrimento, pelo que temos de fazer tudo para termos não só crianças como adultos mais felizes e com horizontes de mais dignidade. Não podemos repetir apenas a frase de Nelson Mandela: “A Criança é o projeto mais belo e mais importante da Humanidade”. Temos de transformar este projeto em realidade!”.
Maria João Pires, pianista
"A coragem vai-te servir para respirar, deixar entrar o ar a plenos pulmões, projetar o teu grito, para depois poderes cantar".
Dulce Rocha, presidente do Instituto de Apoio à Criança
"Ouvi já muitos adultos, homens e mulheres, que me falaram de um alívio que sentiram após a revelação do segredo. Disseram-me todos que demoraram a contar por causa do medo, primeiro, e da vergonha, depois. Com o tempo, tinham concluído que aquela gaveta que tentavam fechar à chave, todas as noites se escancarava, sem que conseguissem evitar que se abrisse. E disseram-me que contar aquele tormento tinha sido um pouco libertador e que esperavam viesse a ser também o início de um processo reparador. Penso, por isso, que todas as vítimas têm o direito de falar do abuso que sofreram e que lhes provoca ainda dor e revolta. Estou mesmo convencida que será benéfico para todos os sobreviventes, porque atenua o trauma e permite alguma tranquilidade, que por sua vez quase sempre se associa à busca de apoio psico-terapêutico. Por fim, creio que romper esse silêncio castrador que vos impede de viver em paz, será ao mesmo tempo o início da recuperação e também um exemplo inspirador para todas as vítimas de abuso sexual na infância.
Jorge Moreira da Silva, ex-ministro
"Porque haverá um adulto, vítima de abusos sexuais em criança, de querer reviver, agora, esse pesadelo denunciando o agressor? Não tendo qualquer obrigação de o fazer - e este é um ponto essencial -, a decisão de avançar para a denúncia do crime ocorrido, além de permitir uma eventual punição dos criminosos e daqueles que os encobriram, dá dois contributos de enorme importância. Primeiro, contribui para uma maior proteção das presentes e das futuras vítimas. Quanto mais vítimas do passado denunciarem os crimes de que foram alvo, maior coragem terão as presentes e futuras vítimas para denunciarem os abusos sexuais de que estão a ser alvo. Segundo, sensibiliza a sociedade para uma cultura de tolerância zero em relação aos abusos sexuais e para as responsabilidades indeclináveis das organizações, onde se inserem os abusadores, na prevenção destes crimes e na proteção total das vítimas."
Eugénio Fonseca, antigo presidente da Cáritas
"O medo é um dos agrilhões das liberdades individuais e coletivas. Há quem viva prisioneiro deste sentimento uma vida inteira, pondo em causa o seu bem-estar e o dos que lhes são próximos. Para muita gente o medo maior tem a ver com a possibilidade do seu bom nome e honra se deixarem enlamear por invejas e atitudes indignadas de outros. Em algumas situações perversas tenta-se, ignobilmente, transformar a vítima das mesmas em culpadas. Esta realidade ainda agudiza mais o medo.
Conheço quem viva acorrentado por vários medos. Nenhum desses partilhados comigo tiveram, até agora, relação alguma com abusos sexuais. Penso que quem foi vítima de tão inqualificável crime, tenha maior receio de, ao darem conta das feridas que lhe foram abertas no corpo e no âmago de si mesmos, venham a causar rejeição familiar e social.
Apelo a todas e a todos que têm cravado em si, este estigma que rompam o silêncio que os oprime e falem às autoridades competentes, garantes da privacidade e da justiça.
Como membro da Igreja católica, que tem o seu fundamento em Jesus Cristo, incondicional defensor dos oprimidos, por quem procuro pautar a minha forma de viver, o meu pedido tem uma força maior. É que Jesus quer que todos tenham vida em abundância e nos tratemos como irmãos. Por isso, se algum membro da Igreja católica, espezinhou, mesmo que há muitos anos atrás, a vossa dignidade, obrigando-vos, explicita ou implicitamente, a práticas sexuais soltem as amarras do medo que têm atado as vossas bocas.
Foi criada, como sabeis, pelo Episcopado português, uma Comissão Independente formada por um grupo de pessoas idóneas para escutarem ou lerem o que vos aconteceu e vos tem impedido de saborearem a alegria de amar verdadeiramente e viverem com maior felicidade. Estas pessoas estão, ansiosamente, à vossa espera. Não demorem. Confiai. Depende apenas de vós. Acreditai que a verdade liberta. Se corresponderem ao meu apelo, vereis como as vossas vidas se transformarão.
Por favor, deem voz ao vosso silêncio. Não permitam, por mais tempo, que vos roubem a esperança de serem mais felizes."