O combate a pobreza tem sido uma bandeira do discurso político, nos últimos anos, tanto do primeiro-ministro, António Costa, como do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa. Mas ao olhar para a proposta de Orçamento do Estado de 2022, o dinheiro canalizado para o combate à pobreza infantil é 14 vezes menos do que aquele que está destinado para injetar na recuperação da TAP.
O Orçamento do Estado prevê um acréscimo de 140 milhões de euros até 2023, metade dos quais em 2022 (70 milhões de euros), no âmbito da “Garantia para a Infância” destinada às famílias pobres com menores a cargo.
Já a TAP vai receber uma transferência de quase mil milhões de euros em 2022. Este valor soma-se aos 1.200 milhões de euros em 2020, e os 970 milhões de euros este ano.
A economista Susana Peralta chama a atenção para esta comparação num artigo de opinião no “Público”, e em declarações à Renascença, a professora da Nova SBE diz que quando gastamos dinheiro no Orçamento “estamos sempre a fazer escolhas”.
“Se gastamos numa coisa já não vamos gastar noutra. As escolhas que fazemos deviam estar mais explícitas. Quando estamos a meter um euro num lado estamos a tirar do outro”, alerta.
A falta de clareza nos números apresentados no Orçamento, na opinião da economista, limita o debate público. “Os mapas orçamentais são obscuros e não temos o hábito de comparar estas grandezas umas com as outras. A nossa sociedade está a fazer escolhas através do sistema político com o qual se calhar nem se revê assim tanto”, avança.
Segundo as últimas estatísticas disponíveis do Inquérito às Condições de Vida e do Rendimento, em 2019, havia 16,2% de pobres em Portugal; mas 19,1% das pessoas até aos 17 anos de idade eram pobres.
Estaremos a dar mais dinheiro aos mais ricos?
Se genericamente concorda com a direção dos apoios ao combate à pobreza infantil, Susana Peralta entende que há ainda uma outra dimensão em que a falta de dados pode estar a levar equívocos.
A especialista diz que o dinheiro público pode estar a financiar em maior escala os filhos de famílias mais abastadas do que as que são mais carenciadas.
A pergunta para a qual não tem resposta, por não ter dados que só o Governo dispõe, é: “Quanto é que subsidiamos as crianças ao longo da distribuição do rendimento?”
Mas a economista suspeita que há uma escolha implícita, “que é dar mais fundos às crianças das famílias mais abonadas”.
“Se percebermos quanto é que cada criança recebe em deduções de coleta de IRS, despesas de educação, e quanto recebe em abonos de família, íamos encontrar discrepâncias que levariam a perceber que que estamos a dar mais dinheiro aos mais ricos do que aos mais pobres”, afiança.
Ainda assim, Peralta ressalva que “quando estamos a dar dinheiro a pessoas em situação de pobreza estamos sempre a contribuir para diminuir a intensidade da pobreza, que vão ficar menos pobres”.
Medidas cosméticas para combater a pobreza
No discurso de comemoração do 5 de outubro, Marcelo Rebelo de Sousa veio alertar para o flagelo da pobreza. "Se queremos um 5 de Outubro como data viva, então criemos um Portugal mais inclusivo. Não venceremos com dois milhões de pobres", defendeu.
A economista Susana Peralta afirma que se olharmos para o OE de 2022 com o foco no combate à pobreza e à exclusão social, então a conclusão é a de que “são medidas que tem um ar muito cosmético”.
O aumento em 50 euros ao longo do ano para os pensionistas (mais 10 euros por mês a partir de agosto), não terá “um impacto na vida das pessoas que se veja”.
A especialista em economia política afirma ainda que não se combate a pobreza mexendo em escalões de IRS.
“O nosso problema estrutural dos dois milhões de pessoas em risco de exclusão social não o vamos resolver com este Orçamento, certamente”, conclui.
Em agosto, no congresso do PS, o secretário-geral socialista e primeiro-ministro, António Costa, anunciou o alargamento dos abonos destinados às famílias para incentivar a natalidade e para combater a situação de crianças pobres ou em risco de pobreza.
"Iremos alargar as medidas de combate à pobreza ao longo dos próximos dois anos a todas as crianças, independentemente da sua idade. Por isso, as crianças que têm entre três e seis anos - e que atualmente, se estiverem na condição de pobreza extrema recebem 50 euros, ou 41 euros em situação de pobreza -, nos próximos dois anos, os apoios chegarão a 100 euros", especificou o primeiro-ministro.
Em relação às crianças com mais de seis anos, o Governo vai aumentar o abono dos 27 e 31 euros "para que nenhuma tenha menos de 50 euros por mês", acrescentou.