O que pensa a Comissão Europeia sobre o futuro da UE no que respeita à digitalização, à independência energética face a países externos e até uma forte aposta nos sistemas de Defesa? São perguntas a que deu resposta nos estúdios de Bruxelas a Comissária Margrethe Vestager.
A dinamarquesa é responsável pela área da Concorrência, mas também tem forte influência nas áreas da digitalização, tecnologia e energia e, por isso, não tem tido mãos a medir nos últimos tempos. Porque, ainda não tinham recuperado de dois anos de uma pandemia que teve efeitos nas importações do Extremo-Oriente e que tantos atrasos provocou na indústria europeia, e já os 27 países da União Europeia tinham de olhar com atenção para leste, para bem perto das fronteiras comunitárias, onde a Rússia invadiu a Ucrânia. Em poucos meses, a Europa teve de se mostrar unida como nunca nas sanções contra Moscovo. Mas também na procura rápida de soluções para deixar de depender tanto dos combustíveis importados da Rússia, sobretudo petróleo e gás.
UE não pode depender do fornecimento externo de semicondutores
“Autonomia” é a palavra-chave, não só na área da energia, mas também da tecnologia e os semicondutores são o exemplo perfeito disso. Tudo o que é tecnologia hoje em dia depende destes componentes. E, no mês em que rebentou a guerra, Bruxelas avançou com o “Chips Act”, com o objetivo de duplicar a participação no mercado dos actuais 9% para 20% até 2030.
Vestager diz que os 27 têm de prosseguir com a estratégia para os semicondutores, porque hoje em dia na Europa produz muito poucos “chips” e é importante que se trabalhe “com os Estados Unidos e criarmos uma espécie de coligação de países que podem fornecê-los. Porque temos o Canadá, a Austrália, a Noruega a quererem fornecer-nos outros materiais. E, se pudermos criar uma estrutura para que as empresas se possam envolver a longo prazo, teremos mais investimento. Estamos a fazer pressão nesse sentido, mas pode levar algum tempo”.
A comissária está ciente que a falta de matérias-primas como o gás “neon” - agravada pela invasão da Ucrânia - pode fazer aumentar ainda mais a escassez de semicondutores, pode diminuir ainda mais o fornecimento. E isso “é um problema. Porque, numa economia avançada como a europeia, os semicondutores são essenciais para muitos produtos”.
Margrethe Vestager reconhece que “há um paradoxo, porque já em 2014, a Comissão propunha que a Europa produzisse pelo menos 20% do que precisa. Mas não aconteceu nada desde essa altura”. Então, por que é que as coisas poderiam ser diferentes agora? Vestager diz que “em primeiro lugar, vemos a urgência num nível completamente diferente por causa da situação mundial. E a guerra só veio tornar isso ainda mais óbvio. E a segunda razão pela qual achamos que vai acontecer desta vez é que temos projetos específicos no terreno”.
Ninguém pode ficar para trás na digitalização
Estabelecer cooperação no que toca às matérias-primas é essencial, mas a dinamarquesa aponta ao futuro noutra área: a digitalização. A comissária garante que estão a ser dados passos concretos rumo ao chamado Mercado Único Digital, mas ainda existe uma grande barreira, que é a falta de conhecimento por parte das pessoas - sobretudo as mais velhas - para tornar a sociedade europeia cada vez mais digital. E é preciso que haja uma política comum de formação, para que ninguém fique para trás, independentemente da idade…
“Se for uma pessoa que tem agora 70 anos, é provável que viva mais 20. E se olhar para o que a digitalização progrediu nos últimos 20 anos, vai perceber que já não podemos simplesmente dizer que nos reformámos e que vamos apenas tratar do jardim e dos netos. Não. Você tem de continuar a fazer parte disso para não se sentir excluído da sociedade”, afirma. Por isso é importante que haja pontos de contacto “onde haja pessoas reais que entendam a sua situação e possam ajudá-lo e orientá-lo, de modo que cada cidadão vá aprendendo um pouco de cada vez. Mas, ao mesmo tempo, vai estar apto a manter o seu próprio negócio, a inscrever-se como eleitor, a pedir uma receita electrónica, porque essa também é a melhor forma de aprender. Em vez de ter aulas, vai aprendendo um bocadinho mais, de cada vez que precisa de fazer alguma coisa na prática”.
A urgente independência energética
Sobre a dependência do petróleo e do gás russos, a Comissária defende que cada Estado-membro deve decidir por si qual a melhor maneira de apoiar as famílias que mais sofrem com o aumento dos preços da energia. Afirma mesmo que “os Estados-Membros têm o poder de decidir por si, porque está definido que existem enormes diferenças”. Bruxelas aconselha, por isso que os Estados-membros “apoiem directamente (em particular é claro) as famílias com rendimentos mais baixos e em que o aumento dos preços da energia lhes leva boa parte do orçamento semanal ou mensal. E isso nem tem de ser declarado”. De que forma? “Podem simplesmente avançar e apoiar os consumidores do seu país. Claro que estes apoios saem caros. Mas espero que seja algo que não dure muito, mesmo admitindo que os preços ainda vão manter-se altos mais algum tempo”, afirma Vestager.
Questionada sobre a solução ibérica para estancar a subida do preço do gás, Margrethe Vestager reconhece que Portugal e Espanha estão “muito à frente” do resto da UE no que toca ao uso de energias renováveis. E reconhece que, se existisse já um mercado integrado de energia, ia ser muito mais complicado aos países ibéricos arranjar solução para impedir o aumento do gás.
Reforço da Defesa tem de ser bem planeado
Enquanto não se resolve a crise provocada por uma guerra inesperada a leste, Bruxelas vai já precavendo o futuro também em matéria de Defesa. Daí que se justifique todo o investimento em sistemas de armamento que sejam compatíveis entre os 27 países. Vestager queixa-se de que, até agora, os países da União Europeia caíam no erro de comprar o armamento que entendiam, sem seguir uma estratégia comum, mas os investimentos nesta área têm de ser concertados.
“Gostávamos que 35% dos gastos militares fossem gastos conjuntos entre os Estados-membros. Hoje em dia estamos a falar de 10% ou algo semelhante. Mas acho que as coisas mudaram. A guerra mudou a Europa”. Vestager lembra que o facto de muitos países da UE terem enviado equipamento, armamento e munições para a Ucrânia, “para permitir que os ucranianos se defendam… tudo isso fez com que aumentasse a procura de armamento”.
A comissária reconhece que não foram só as ameaças de ataques informáticos, “mas também a ameaça de alguém realmente invadir o nosso território”. E pergunta: “Há seis meses, quem diria que a Europa ia ser invadida? E agora estamos numa situação completamente diferente”.
Põe-se agora a necessidade de reabastecer os “stocks”. Porque estão a ser gastas munições, estão a ser usados veículos e os arsenais têm de ser repostos. Vestager acha que “há uma mudança de opinião, até porque estamos a falar do dinheiro dos contribuintes e cada contribuinte tem a expectativa de que o seu dinheiro seja usado da forma mais eficiente possível, que permita que os diferentes equipamentos militares funcionem uns com os outros, de modo que seja possível usar em conjunto o material que cada Exército nacional tenha realmente investido”. Mas reconhece que vai ser preciso um grande esforço… porque a posição dos Estados-membros tem sido até agora a de “Eu compro o meu próprio material”.