Não há ainda estatísticas consistentes sobre o impacto da pandemia nas desigualdades de género, mas algumas instituições asseguram que as mulheres foram globalmente mais prejudicadas pelo desemprego e mais sobrecarregadas em casa durante os confinamentos.
É o caso dos estudos mais recentes do Fórum Económico e Social (WEF) ou Instituto Europeu da Igualdade de Género.
O WEF conclui que, devido à pandemia, a igualdade no acesso à saúde ou nas questões económicas pode só chegar daqui a 135 anos. Portugal está neste momento em 22.º lugar na tabela do "Global Gender Gap Report" num total de 156 países analisados.
A socióloga Anália Torres afirma que a desigualdade persiste em Portugal "mas houve grandes transformações na situação das mulheres e dos homens" nos últimos anos. A investigadora nesta área admite que em Portugal a pandemia também sobrecarregou as mulheres portuguesas, até porque, como a desigualdade está a diminuir, elas acumularam muito trabalho em casa e fora dela.
"As mulheres já estão por exemplo também na esfera pública e do trabalho, responsáveis pelas frentes que foram 'atacadas' pela pandemia. Quem trabalha na área da saúde e na educação, de uma forma global, são esmagadoramente as mulheres. Como para além disso, as mulheres acumulam a dimensão do trabalho e da esfera privada, observamos que no quotidiano de uma mulher e de um homem hoje em contexto de pandemia - evidentemente que há setores masculinos que também foram afetados - os setores que foram mais afetados, de uma forma global, são aqueles em que as mulheres estão ativas nas duas frentes", afirma Anália Torres que acompanhou em termos científicos a produção do mais recente documentário encomendado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos sobre a situação das mulheres em Portugal.
A lei ajuda, mas é a lei
Por seu lado, Sandra Ribeiro, que preside à CIG - Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género reconhece que o país está incomparavelmente melhor face ao panorama de há 40 anos.
No entanto, a nova presidente daquela entidade integrada na Presidência do Conselho de Ministros reconhece que o bom desempenho de Portugal nos rankings internacionais tem sido conseguido por via de imposições legais como quotas ou a lei da paridade em cargos públicos.
"Diz-se muito que as questões não mudam por decreto, que a igualdade não se impõe por decreto. Não se impõe, mas ajuda muito. A questão é mais complicada no dia-a-dia. Há uma diferença grande entre aquilo que está na legislação e depois aquilo que acontece na prática. E quando vamos para as questões da conciliação entre as vidas familiar, profissional e pessoal e tratamos da questão do trabalho não pago, aí entramos numa esfera de mentalidades que são muito mais difíceis de mudar", admite Sandra Ribeiro no "Da Capa à Contracapa".
A desigualdade começa em casa?
As especialistas nesta área concordam num ponto. A questão do trabalho não pago, ou seja, aquele que a mulher faz em casa sem qualquer compensação, subsiste como o maior desafio em matéria de igualdade de género em Portugal.
Anália Torres sublinha que as desigualdades salariais entre homens e mulheres começam logo em casa. A socióloga argumenta que muito desse desnível parte da dimensão considerável de falta partilha do trabalho doméstico.
"Isso é também uma questão de consciência coletiva e de partilha. Há que mostrar que isto é mesmo uma sobrecarga impeditiva das pessoas poderem muitas vezes desenvolver todo o seu potencial. Cada pessoa acha que aquilo é um problema seu. Mas não é um problema individual, mas global", defende a socióloga na Renascença.
A pensar já no pós-pandemia, a Presidente da Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género, Sandra Ribeiro, defende que os planos de recuperação têm que incluir uma atenção especial à desigualdade de género em várias áreas económicas.
"Este é o grande momento nevrálgico a que temos que estar muito atentos e atentas. Temos que fazer toda a força e a influência possível para garantir que as medidas de apoio ao emprego têm uma perspetiva de género, que as medidas - que podem ser ambientais, de empreendedorismo, de cultura, educação - tenham esta vertente, para garantir que as mulheres efetivamente não ficam numa situação ainda pior do que aquela que tinham antes da pandemia", apela a Presidente da CIG.
O que fariam se fossem Úrsula na Turquia?
A Renascença desafiou as convidadas do "Da Capa à Contracapa" a colocarem-se na circunstância enfrentada recentemente pela Presidente da Comissão Europeia na recente visita à Turquia.
Confrontada com a falta de uma cadeira a que deveria ter dieito num encontro oficial com o presidente turco e sem um gesto de deferência do presidente do Conselho Europeu, Úrsula Von der Leyen foi remetida para um sofá lateral.
Anália Torres assegura que sairia da sala e nem sequer se sentava no sofá. "Virava as costas e vinha imediatamente embora", garante a socióloga, que não tem dúvida que a mulher que preside ao executivo comunitário estava a ser "apoucada" naquela reunião em Ancara.
"Compreendo que [Úrsula Von der Leyen] possa ter ponderado mais a sua posição institucional. As pessoas decidem no momento e ela poderia ter tido mesmo uma posição de maior rejeição. Compreendo por causa dessa dimensão institucional, ela pode não ter querido [tomar aquela posição] mas eu não faria isso. A provocação estava lá, portanto era caso para fazer uma coisa mais radical", sublinha a investigadora em temas de igualdade de género.
Já a Presidente da Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género admite que a sua própria posição mais institucional, permite compreender em parte a reação da presidente da Comissão Europeia.
"Acho que não me viria embora. Pensaria muito rapidamente sobre o que poderia fazer para tentar que não fosse um incidente internacional ainda maior do que o que parecia já ser. Dirigir-me-ia ao senhor presidente da Turquia e diria 'parece que falta aqui uma cadeira. Por favor, providencie que vão buscar uma cadeira, senão a reunião não pode começar' e opor-me-ia a que a reunião acontecesse", responde Sandra Ribeiro no programa "Da Capa à Contracapa" da Renascença, em parceria com a Fundação Francisco Manuel dos Santos.