O meu texto sobre o orçamento para 2022 terminava, na semana passada, com a expressão mais otimista que consegui encontrar perante um documento ainda não formalmente apresentado, mas do qual conhecíamos, há pelo menos seis anos, os principais autores e as suas tradicionais “muletas”, e já antevíamos, face aos anúncios e fugas de informação, o essencial do conteúdo e a ausência de uma qualquer oposição capaz de fazer frente ao seu vazio. A expressão encontrada era um breve: Haja saúde!
De facto, depois de um ano de pandemia, que só não foi pior porque um vice-almirante foi capaz de salvar não apenas o povo de maior desgraça mas a própria ministra Marta, já não me parecia mal conseguir “manter a saúde”, talvez a juntar à bola mágica do PRR (única esperança de minorar a cepa torta a que estamos votados mais uma década). Desde que satisfeitas as prioridades de quase todas as “pessoas lá de casa”, como dizem os comentadores quando se sentem a perder a atenção do público, manter a saúde já merecia uma medalha de mérito.
Uma vez apresentado o texto, numa primeira leitura, confirmei tudo o que antecipava: estavam lá os apoios extraordinários de combate à pobreza infantil (a merecer o apoio de todas as bancadas!); previsto o aumento regular das pensões e o extraordinário das pensões mais baixas – inferiores a 900 e até 600 e poucos euros. Embora algumas das que serão contempladas com mais dez euros mensais estejam a roçar o limiar da pobreza e o aumento estivesse previsto para Agosto, ficava em aberto a margem para ser antecipado para Janeiro a pedido do PCP. Nenhuma surpresa.
Com ligeiras melhorias para os 400 mil novos pobres, a taxa de desemprego a baixar para um nível quase “natural”, prometendo um substancial aumento do abono de família para crianças e jovens dos escalões mais baixos, e com 2,5 milhões de reformados conformados, o Governo acudia ainda aos mais de 800 mil funcionários públicos por duas vias, primeiro um aumento de 0,9 por cento transformados em 2,5 por cento “dos salários médios” e 3,1 por cento da massa salarial. Segundo, fruto da gritaria do bloco, haveria ainda esparsas medidas a nível da progressão e revisão de carreiras e de um ou outro estatuto profissional mais empencado.
Faltava ver o que se previa para o privado (“ricos” com mais de 75 mil euros de rendimento só seriam atingidos se tivessem mais valias bolsistas de curto prazo …) e, no mais, até podia haver algum ganho. No caso dos novos escalões do IRS as deduções por filhos pequenos foi um sinal positivo e teve o enorme mérito de beneficiar quase todos sem prejudicar praticamente ninguém. Os pagamentos por conta que já tinham morrido eram formalmente enterrados, e o IRC não descia nem subia.
Quanto aos pobres que são um quarto da população ativa e ganham o salário mínimo, o aumento de 30 euros, já previsto, até podia ser maior dependendo da pressão dos parceiros da antiga geringonça. Depois, o salário médio que já está ao nível praticamente do mínimo subiria em conformidade e o provável desbloqueio da contratação coletiva em sede de concertação talvez até pudesse remediar alguma coisa. Os empresários poupados a novos agravamentos de impostos e focados nos preços da energia podiam, por uma vez, aceitar o óbvio: a competitividade nacional não pode mais basear-se no pagamento de salários miseráveis.
Nas projeções macro económicas salta à vista o erro de cálculo em matéria de preço do petróleo, onde se espera uma ligeira descida de dois dólares quando o galope nos mercados ameaça não parar, sendo tudo menos “transitório”.
As projeções para os riscos acrescidos em matéria de riqueza para um aumento de 20 por cento no custo do barril de Brent não assustam ninguém, mas o pior é que o aumento está a ser a um ritmo e dimensão nunca visto e abrange todo o mundo, o que pode trazer de volta uma espiral inflacionista que o texto não prevê. A verdade é que o FMI, a OCDE, a CE e o próprio Banco Central Europeu continuam igualmente em negação nesta matéria. Não estávamos sós.
Entretanto o Governo apanhou um susto com as declarações do Presidente da Républica: sem Orçamento vai haver eleições. Daí disse sobre os combustíveis tudo e o seu contrário: não mexemos no ISP, vamos esperar para ver se é preciso mexer. Acabando ontem a afirmar: vamos já rever o imposto e forçar a descida do preço do gasóleo e da gasolina em pelo menos três cêntimos. O normal num Governo que diz e se contradiz dia sim, dia não.
Se a crise dos combustíveis não se traduzisse rapidamente no caos britânico (por cá a falta de camionistas também se faz sentir e não há requisição civil que nos salve e talvez não haja um número suficiente de militares encartados) não me parecia que este orçamento sofresse de algum pecado maior do que os anteriores. Com as declarações de ontem parecia quase perfeito.
As contas continuam certas (muitíssima gente dá enorme importância a isso). A dívida agiganta-se, mas é até um pedacinho menor que a deste ano e “as pessoas lá em casa não ligam nenhuma à dívida”. O crescimento devia ser muito maior, mas todos já nos habituamos à ausência de estratégia e ambição.
Quanto a alternativas, ninguém fala, porque ninguém se deu ao mínimo trabalho de as pensar. Da esquerda à direita a ausência de pensamento a longo prazo é total. Sendo assim, o OE parecia-me condenado a passar no meio da vozearia e encenação habitual, no meio do regateio em praça pública daqueles mil milhões que o ministro das Finanças tem guardado no seu saquinho multicolor de provisões, cativações e congéneres.
Eis senão quando seguem-se as fúrias verbais de todos os partidos e as declarações animadas de um chorrilho de votos contra pré-anunciados.
Corri para o documento. Reli a habitual lista de investimentos, o copy paste mais ou menos eloquente para boa parte dos sectores. Lembrei-me das declarações de Pedro Nuno Santos, mas vi lá o “perdão de dívida à CP”, as dotações para as compras não apenas de rodas mas de mais uma meia dúzia de novas composições, investimentos previstos para os metros de Lisboa e Porto, rodovias, etc… E deduzi: a guerra do PS terminou com o Leão amansado.
A explicação para tanto barulho e acrimónia não parecia estar por ali. Depois vieram os médicos, os enfermeiros, os actuais e ex-bastonários e percebi: as mais baixas expectativas eram superadas. O regresso do caos não se ficava pelo Hospital de Setúbal e a velada ameaça de Marta Themido ao “respeitinho” imposto pela nova lei de bases da saúde ao bando de 87 médicos que ameaçara demitir-se.
Ao meu “haja saúde!” o texto orçamental respondia, com um tímido aumento de 700 e tal milhões (uma fatia a que acrescem outros 800 e poucos milhões de investimento) mas, no total do bolo canalizado para a saúde (13,529 mil milhões) estes aumentos parecem duas migalhas. Pior ainda é o facto dos 703 milhões adicionais se registarem face ao orçamento inicial para 2021, descendo para apenas 50 milhões perante o montante efetivamente gasto este ano.
Pouquíssimo. Grande parte devido ao efeito PRR o que irrita também um bocadinho. Mas há ainda pior. O OE adianta, logo a seguir, que este pequeníssimo aumento deve ser acompanhado de um radical corte nas despesas ineficientes da própria “ saúde” através de uma melhoria da eficiência na gestão do sector capaz de gerar, pelo menos, uma poupança de 615 milhões, segundo as contas, por alto, feitas mediante a informação parcelar expressa nas páginas 48 e seguintes e que fui somando.
Como? Desde o melhor controlo do absentismo, à melhoria da gestão de equipas, à gestão eficaz de compras de medicamentos, relação com as farmácias e aquisição e controle de meios de diagnóstico além da conferência eficaz de faturas , trudo isso é desta que vai ser visto e revisto. Eu se fosse gestora hospitalar, médica, enfermeira, técnica auxiliar, passava-me. Não sou, mas como utente infelizmente assídua: passei-me.
Não pode ser. Convenhamos que com tanta reestruturação de serviços, aumento de funcionários, andas e bolandas pedidos a todos os profissionais, faltas do mais básico, mobilização para uma guerra a que nem faltaram os camuflados e os fatos NBQ usados 8, 9 dez horas, por vezes sem poder ir nem à casa de banho, horas extraordinárias que nunca mais acabam e o Governo prevê prolongar com bónus aqui e ali, como quem antecipa: não pensem que vão ter colegas suficientes e passar ir dormir a casa, reconhecer que este é um dos sectores onde é possível cortar tantos desperdícios (até pode ser verdade!) mas soa a insulto ou excesso de amadorismo.
Um SNS assim descrito e gerido faz-nos tremer. Sei que não basta lançar dinheiro para cima dos problemas, mas após seis anos de poder era suposto que os problemas desta ordem já estivessem resolvidos. Há muito dinheiro aparentemente mal gasto e não basta dizer que, como por magia, agora é que vai ser.
Com as “comadres-muletas- governamentais ” zangadas, camionistas a ameaçar sair à rua, profissionais dos mais variados sectores em greves, trânsito de novo caótico, combustíveis a 2 euros o litro (mesmo com a anunciada borla fiscal) , percebe-se que um Presidente experiente tenha antecipado que a crise atual é talvez diferente das anteriores e um orçamento tão bom ou tão mau quanto os antecessores possa tornar-se o pretexto ideal para voltar às urnas.
Moedas foi o primeiro sinal que a mudança de ciclo pode ser possível. Rangel percebeu isso muito bem e além de apresentar uma candidatura com tudo para ser ganhadora dentro e fora do partido desafiou Costa para vir a jogo em 2023. Só Rio contínua em negação.
Alguém que lhe explique o que se passa: às vezes à beira da meta surgem os sprinters, e se corredor de fundo não acelera antes o passo perde seguramente a corrida. Ninguém deve ganhar com eleições antecipadas. Nem sequer o PS porque a maioria absoluta nunca estará ao seu alcance. Talvez nem Ventura possa ganhar porque a oposição interna às lideranças espreita em todos os partidos, da extrema-direita à direita extrema passando pela quase PS. O país parece que perdeu o tino e arrisca-se a perder a bazuca. Mas mesmo que o teatro se fique por aqui, Rio com eleições ou sem elas já perdeu o pé. Senão no país, pelo menos no partido.
O ar grave de Jerónimo, sexta à saída de Belém depois de mais de uma hora de conversa com Marcelo faz temer o pior, em matéria de estabilidade: o PCP põe tudo sobre a mesa do pobre, é preciso garantir “o salário para o pão, saúde, habitação”. Sem isso nada. Às tantas Marcelo fez bem em avisar: esta crise não é a brincar. Não será como as outras.