Carlos Amaral Dias: “Avaliação psiquiátrica regular diminuiria o risco de um novo Lubitz”
28-03-2015 - 18:01
 • João Carlos Malta

O psiquiatra Carlos Amaral Dias diz à Renascença que a “autópsia suicidária”, através da qual se vão analisar os últimos acontecimentos da vida do ex-piloto da Lufthansa, pode trazer luz aos motivos de Andreas Lubitz. Porém, mesmo essa avaliação, não dissipará todas as dúvidas.

Por mais assustador que seja, não há maneira de dar segurança total de que um caso destes não pode repetir-se. Pode. Contudo, talvez haja maneiras de diminuir as probabilidades, garante o clínico.

“Não digo que não desse uma garantia absoluta, porque pode haver uma alteração de repente. Mas, pelo menos, diminuiria as possibilidades de isto acontecer”, assegura.

O psiquiatra adianta que a maior parte das depressões não leva a ter tendências suicidas e homicidas, mas que em alguns casos pode acontecer. Quando se entra num delírio ocorre uma perda de ligação com a realidade com surtos, que para o doente justificam os actos.

Neste momento, as pessoas estão perplexas em relação ao que aconteceu no voo da Germanwings, pela aparente falta de respostas para o que se passou. Há alguma coisa que possa explicá-lo?
Essa pergunta poder-se-ia aplicar a outras situações semelhantes, àquelas pessoas que entram numa escola nos Estados Unidos e matam, são assim tão diferentes? São diferentes apenas porque a observação é mais violenta. As pessoas que matam a família toda e depois se matam a elas próprias, apesar do carácter da vinculação entre um pai, os filhos e a mulher, matam. Acho é que em termos estatísticos, os poucos casos conhecidos mostram que os pilotos são, de uma forma geral, pessoas com mais saúde mental.

Agora, porque é que os pilotos não podem ter uma depressão com sentimentos suicidas e homicidas?
Isso é mais frequente na humanidade do que se pensa. O sentimento generalizado que assistimos das pessoas é motivado pela pergunta que todos fazemos: "Podemos estar todos sujeitos a uma coisa destas?" Claro que podemos.

Vamos chegar a perceber o que é que motiva alguém neste estado psicológico e emocional a tomar uma decisão destas?
Há uma coisa se chama autópsia suicidária. E o que é? É um levantamento sobre tudo o que aconteceu antes do episódio fatal, dias, semanas ou mesmo nos meses antes. Dá para ficarmos, pelo menos, com uma ideia do porquê. Aquilo que se sabe neste momento, de que ele consultou um psiquiatra antes de isto se ter passado e que escondeu isso da companhia, revela que já tinha um problema e que já durava há muito tempo.

O piloto tinha um amplo historial de depressão e de crise existencial. Todavia, há muita gente que está deprimida ou esgotada e não mata 149 pessoas. O que é que o explica? Qual é o "click" que faz a diferença entre ter a patologia e não ter estas repercussões ou querer fazer matar-se e matar os outros?
As depressões não são todas iguais, são tudo menos iguais. Há depressões que são acompanhadas de um estado alucinatório, que faz variar o humor, e não com os aspectos cognitivos como a esquizofrenia. No entanto, há perturbações que podem levar a estados de alucinação. As depressões graves e muito graves podem ter esta forma. As depressões mais comuns não têm estes contornos.

Isso num tratamento psiquiátrico torna-se perceptível? É possível perceber que uma pessoa passará ao acto?
Prever que uma pessoa vai passar ao acto é difícil numa situação destas, e penso que terá sido o que se passou com o psiquiatra que o viu.

Caso tivesse percebido poderia interná-lo?
Depende do que o psiquiatra observou. Se não observou nenhum sinal de que poderia fazer mal aos outros, nem a ele próprio, se apenas apresentava uma fantasia de suicídio, aí o psiquiatra não tem instrumentos que lhe permitam fazer alguma coisa. Por exemplo, em Portugal a única forma de fazermos algo é através da lei de saúde mental, e nessa lei apenas podemos optar pelo internamento compulsivo, se o doente for um risco, que era o caso deste piloto. Não obstante, é preciso que o risco seja detectado.

Que tipo de pessoas deprimidas está mais volátil a poder ter este fim?
São as depressões que não têm apenas uma componente depressiva, mas que se caracterizam por perturbações que já têm um carácter de interpretações delirantes da realidade e do próprio indivíduo. Há uma perda do sentido da realidade, a pessoa não entra em contacto com a realidade. Ou seja, o que acontece depois é legitimado pela doença. A pessoa perdeu a consciência mórbida e a capacidade de se prenunciar sobre o acontecimento de uma forma próxima da realidade. E pode dar origem a um sentimento em que se acha que se tem o direito de matar estas pessoas todas porque a sua raiva contra humanidade é enorme.

É o delírio, a perda de contacto com a realidade, que torna o desfecho possível...
Sim, exactamente.

Dentro dos casos de depressão, estes são casos frequentes?
Felizmente não. Mas nas esquizofrenias já são. Com os casos que já se conhecem, as companhias de aviação deviam fazer alguma coisa.

Estamos vulneráveis a este tipo de situações?
Sim, nós estamos sempre vulneráveis. Poderia haver uma história prévia de depressão ou ser a primeira manifestação grave. Mas, para isto ser a primeira manifestação, é preciso haver um conjunto de circunstâncias que não vejo como juntar. Isto pode ser uma manifestação que poderá acontecer com alguma probabilidade em alguns casos de depressão, nas esquizofrenias ou noutras formas de psicose. Isso pode ocorrer de um momento para o outro? Pode, contudo a probabilidade é que isto se inscreva numa personalidade que já apresentou sintomatologia que ia no sentido de se tratar de uma doença. Penso que a história deste rapaz vai neste sentido.

Há registo de um esgotamento que o fez parar a formação e agora documentos de que era seguido por um médico, informação que escondeu da entidade empregadora. O que o terá feito proceder dessa maneira?
Não sabemos, pode haver várias interpretações. Pode ter sido para não assumir que mais uma vez estava com uma depressão, porque ele já tinha estado doente, ou pode ter sido porque já tinha isto na cabeça. Porém, não há possibilidade de sabermos isso, até porque uma autópsia suicidária não apanha tudo. Permite perceber, pelo menos, que sendo ele diagnosticado com uma depressão destas, e recomendado que não conduzisse o avião, e fê-lo, isso leva-nos a perceber se isso já não seria uma alteração que ele fez à realidade. Ou seja, que havia uma perturbação prévia com sinais e que estes passaram despercebidos. 

Aparentemente não há nem motivação política nem religiosa, não há nota de suicídio nem disse nada entre o período em que o avião começou a descer e o momento em que a aeronave se despenha. O que revelam estes indícios?
Indicam que foi uma decisão muito mais introjectiva do que projectiva. Habitualmente as pessoas dão sinais porque acham que até deve ser conhecido o que vão fazer, e a razão pela qual o fazem. No entanto, uma depressão não é uma situação desse tipo, não é uma projecção. A depressão é um abuso da introjeção. As pessoas dizem que ele era uma pessoa calma, caracterizam assim a sua personalidade.

O CEO da Lufthansa referiu que Andreas Lubitz estava 100% capacitado para trabalhar. É possível afirmar isto sem a companhia fazer exames psicológicos regulares?
Isso é daquelas coisas que têm muitos problemas. Qual é o direito que tenho de sujeitar uma pessoa a um exame psiquiátrico sem haver sintomatologia que o justifique? É difícil, já viu ao que obrigaria? Eram necessários exames muito regulares. Agora podemos perguntar se isso não tem de fazer parte de uma profissão como esta? Se calhar tem.

As empresas de aviação não fazem exames psicológicos regulares. É uma falha grave de segurança?
Sim, mas não seriam os psicotécnicos, esses não dão nada disto.

Quais seriam então?
Uma observação psiquiátrica. Não digo que desse uma garantia absoluta, porque pode haver uma alteração de repente. Todavia, pelo menos, diminuiria as possibilidades de isto acontecer. Aquilo que fica claro nesta situação é que a vida de centenas de pessoas está nas mãos de uma pessoa, e temos de ter a certeza de que fazemos tudo o que está ao nosso alcance para que essa mão não se vire contra nós.

Mas isso retira o risco a 100%?
Não.