Europa, África e os seus desafios. "A mobilidade segura e ordenada é a principal arma que temos contra os tráficos"
18-02-2022 - 06:15
 • José Pedro Frazão , Sofia Freitas Moreira (vídeo)

Esperada desde 2020, a cimeira entre a União Europeia e a União Africana retoma os temas habituais da paz, segurança e migrações e junta-lhes a dimensão económica, direcionada para a chamada "transição verde" num pano de fundo que ainda é de pandemia. Numa entrevista à Renascença, em jeito de reflexão sobre os mais recentes desenvolvimentos de alguns destes temas, o chefe da diplomacia portuguesa Augusto Santos Silva fornece constantes exemplos dos modelos que Portugal oferece à Europa, incluindo um papel de influência discreta na resolução de tensões no Norte de África como o corte de relações entre a Argélia e Marrocos, por onde passa o gás natural abastece também Portugal.

Augusto Santos Silva conduziu a diplomacia portuguesa nos últimos seis anos e foi o braço operacional de António Costa na Presidência Portuguesa do Conselho no primeiro semestre de 2020. Um longo trajeto governativo com mais de 16 anos em diversos governos, passando ainda pelas pastas da Defesa, Educação, Cultura e Assuntos Parlamentares. No final desta semana acompanha mais uma vez António Costa numa reunião de alto nível bastante cara aos interesses portugueses. A pandemia não permitiu que Portugal pudesse organizar uma Cimeira que já vinha sendo adiada, mas isso não evita que Lisboa queira marcar as discussões nas mesas redondas e retangulares dos chefes de estado e de Governo da Europa e de África.

Numa entrevista em torno da Cimeira que termina hoje em Bruxelas, Santos Silva comenta os desafios da cooperação entre os dois continentes no combate à pandemia, no investimento verde e nas migrações e mobilidade humana, já depois de ter avaliado os casos particulares de Moçambique e da Guiné-Bissau e de ter atualizado a perspetiva europeia e portuguesa sobre a crise na Ucrânia.


A pandemia juntou-se à agenda que vinha sendo preparada para a cimeira que sucedia à de 2017. A questão da vacinação tornou-se central. O que é que falta para garantir um impulso à vacinação em África?

O que falta é uma questão de escala. Julgo que o compromisso europeu de chegar aos 700 milhões de doses doadas este ano vai ser cumprido e ultrapassado. O apoio europeu foi também determinante para que África passasse a dispor das suas próprias capacidades de produção de vacinas, designadamente na África do Sul. Isso é uma mudança qualitativa muito importante.

O caso português é muito interessante. Já doámos praticamente 7 milhões de vacinas, sendo que metade foi para outras geografias que não o espaço da lusofonia e outra metade dirigiu-se especificamente a países africanos de língua portuguesa e Timor-Leste. Por alguma razão os países lusófonos em África têm hoje um nível medio de vacinação muito superior ao do resto do continente.

Esse esforço de doação de Portugal fez sentido por ter acontecido num quadro de uma cooperação mais geral. Apoiamos os nossos irmãos que partilham connosco a língua portuguesa nos equipamentos de proteção individual, realização de testes. formação de profissionais ou doação e apoio à administração de vacinas. esta abordagem mais sistemática garante verdadeiramente resultados no terreno. Dito isto, a escala da vacinação universal é muito superior a esta.


A questão não já a da doação de vacinas, mas de "absorção" da vacinação. Isso passa pela melhoria das estruturas de governação?

Sim, na governação e na administração. Por isso é muito importante que o esforço específico de doação de vacinas não seja algo episódico, mas uma alínea de um conjunto de práticas de cooperação. Por exemplo, no caso português, na cooperação com São Tomé e Príncipe significa o apoio ao sistema local de saúde e à prática de telemedicina. Há consultas que se realizam no Hospital de São Tomé e Príncipe apoiadas por vai remota por médicos portugueses.


Desta cimeira espera-se também um impulso ao investimento em África. A Presidente da Comissão Europeia anunciou recentemente mais 150 mil milhões de euros de investimento em África. A transição energética em África faz-se muito à custa do gás natural, reclamado pelos africanos como uma ferramenta essencial e desaconselhado por países como Portugal, como assumiu na Conferência do Clima em Glasgow. Como ajudar África a fazer a sua transição energética sem assumir que o gás natural é central para os africanos nesse processo?

Em primeiro lugar, compreendendo melhor a situação africana. África é o continente que menos contribui para o efeito de estufa e onde se localizam 6 dos 10 países mais atingidos pelas alterações climáticas, incluindo Moçambique. África não está do lado dos maiores poluidores, mas do lado dos maiores sofredores. Por isso é que temos que apoiar tanto o continente africano.

Em segundo lugar, cada um tem o seu caminho. Portugal pode ter um mix energético que tem num momento em que já três quintos da nossa eletricidade vêm de fontes renováveis. Devemos compreender que os países africanos ainda hoje muito dependentes do petróleo ou do gás natural têm ritmos e calendários específicos de cumprimento do Acordo de Paris. A Europa está em condições de declarar-se neutra do ponto de vista do carbono até 2050. O nível de exigência que devemos ter para a Europa e Estados Unidos é bastante superior ao que devemos ter em relação a países em desenvolvimento.

Portugal considera que o gás natural é uma energia de transição. É uma forma de transição que não pode eternizar-se. Ao mesmo tempo devemos investir mais nas energias renováveis. O potencial da energia renovável em África é brutal. Basta pensar na energia solar. Por isso esta parceria entre Europa e África tem que ser uma parceria para financiamentos conjuntos na promoção da energia solar e hídrica.


Independentemente de alguns países quererem avançar de forma mais rápida?

Sim, a geometria variável aplica-se aqui. Temos um potencial de cooperação com Marrocos que estamos a aproveitar na relação bilateral. Mas o quadro de referência europeu é muito grande. Podemos mobilizar capitais e apoios financeiros ao nível europeu a uma escala que nenhum dos 27 conseguiria sozinho.

Em muitas conferências do Clima, os países africanos vêm reclamando a necessidade de compensação pelos danos causados pelos fenómenos climáticos extremos. Qual é a resposta que a Europa para essas reivindicações?

Em primeiro lugar, garantindo essa ajuda. A Europa pode falar à vontade pois é o primeiro doador mundial de ajuda ao desenvolvimento. Em segundo lugar, a ajuda não chega só por si. Temos que trazer a economia para isto. O crescimento económico hoje faz-se cada vez mais numa base verde e digital.

Não apenas as agências de cooperação da Europa, como o Instituto Camões, aumentam mais os programas de cooperação para o desenvolvimento que têm hoje em África, mas também as agências de investimento, como a AICEP, junto com os privados, os bancos e as instituições financeiras multilaterais, devem compreender que África hoje são 1500 milhões de pessoas e não chegaremos a meados do século sem duplicar a sua população. Isso também representa um enorme potencial de crescimento, ao nível dos recursos humanos e das necessidades sociais a satisfazer.


Mas países produtores de petróleo como a Nigéria ou Angola não vão simplesmente descarbonizar a sua economia só com o apoio da Europa.

Vão descarbonizar ao seu próprio ritmo com base em parcerias. Angola é um dos principais produtores de petróleo é também um dos países mais ricos em potencial hídrico. Temos que indo fazer esse mix. Portugal é um bom exemplo de um país que ao longo deste século XXI foi alterando sustentadamente a sua matriz energética de tal forma que hoje é um exemplo internacional na menor dependência que tem face à energia de origem fóssil e do maior uso que faz das energias renováveis.


Falou em Marrocos. Portugal vai acelerar investimento em matéria de sustentabilidade?

Temos acelerado bastante as trocas económicas. Marrocos é hoje um dos 5 maiores clientes de Portugal fora da União Europeia. Temos também uma complementaridade que devemos aproveitar. Um exemplo é este acordo de mobilidade laboral que celebrámos no início deste ano com Marrocos. O primeiro-ministro usará isto como exemplo, visto que é um dos co-presidentes da mesa-redonda sobre educação, migrações e mobilidade.

O acordo que fizemos com Marrocos permite às empresas portuguesas beneficiarem de trabalhadores marroquinos e estes beneficiam exatamente dos mesmos direitos dos trabalhadores portugueses de forma organizada entre os serviços de empego dos dois países de forma segura e ordenada. Esta é a grande alternativa que existe aos tráficos.


Esse modelo evitaria mesmo os tráficos e as tragédias no Mediterrâneo?

Do nosso ponto de vista é a principal arma que temos contra os tráficos. Não é a única, pois é necessário o controlo de fronteiras ou o mecanismo de readmissão. Mas a existência de acordos de fluxos regulares, seguros, ordenados e legais de mobilidade humana é a melhor alternativa que temos aos tráficos.


Nem todos os países têm a relação mais pacificada que Portugal tem com Marrocos.

Quando Portugal fala nestes contextos de discussão entre Europa e África, as pessoas costumam ouvir-nos com muita atenção. O Primeiro-Ministro vai certamente não só citar esse acordo bilateral com Marrocos como - e sobretudo - citar o acordo de mobilidade da CPLP. Há seis países africanos que juntamente com Portugal, Brasil e Timor-Leste assinaram um acordo de mobilidade nos termos do qual a circulação de estudantes, professores, investigadores, académicos e trabalhadores entre estes países fica mesmo muito facilitada. Disso vai resultar benefícios para a economia e mercado de emprego, com capital humano para países menos dotados. Estamos a falar de uma circulação regular, legal, segura e não de barcos à deriva no Atlântico ou no Mediterrâneo.


Quão preocupado está com a eventual instabilidade na relação entre Argélia e Marrocos?

Estou muito preocupado, mas devo dizer que já estive mais. As coisas agora acalmaram bastante e desanuviaram. São dois países vizinhos de Portugal com os quais Portugal tem excelentes relações e que neste momento não têm relações diplomáticas entre si.


Portugal poderá mediar este conflito?

Portugal nunca se põe em bicos de pés.


Foi pedida essa mediação...

Não. O que interessa é que haja formatos e processos nos quais a Argélia e Marrocos possam retomar contactos. Nós estamos sempre disponíveis para isso.


Isso faria parte do desanuviamento já este ano, uma vez que o final de 2021 não foi famoso nessas relações.

Vamos ver como é que as coisas evoluem. O interesse português é que a região do Magrebe esteja mais estabilizada e para isso é preciso resolver o problema número um que é a Líbia. É preciso que nós, portugueses e europeus, compreendamos bem quão importante é trabalharmos com os egípcios, tunisinos, argelinos e marroquinos. Cada caso é um caso. O nosso relacionamento com Marrocos é diferente do nosso relacionamento com a Tunísia ou com o Egipto. Todos esses relacionamentos são importantes para a política externa portuguesa.