O Estado da Austrália Ocidental, na Austrália, aprovou uma lei que obriga os sacerdotes e ministros religiosos a divulgar às autoridades qualquer conhecimento que tenham de casos de abusos sexuais revelados durante uma confissão.
“Deixa de haver desculpas para não revelar obrigatoriamente casos de abusos só porque a informação se baseia em revelações feitas durante uma confissão religiosa, ou porque o relatório contrariaria, de alguma forma, os princípios religiosos do ministro”, lê-se, num comunicado do parlamento.
A lei foi aprovada no passado dia 14 de outubro e já mereceu duras críticas por parte do bispo de Perth e, também, de vítimas de abusos sexuais.
Numa carta pastoral publicada na passada quinta-feira o arcebispo Timothy Costelloe explica que a lei não só é impossível de aplicar, como pode até ser contraproducente.
“Algumas pessoas parecem ter a opinião de que se uma pessoa diz, durante a confissão, que foi vítima de abusos, o padre não pode fazer, nem fará, nada. Trata-se de uma visão ignorante ou deliberadamente enganadora da forma como se pratica a confissão na Igreja Católica”, diz o bispo.
“Um padre fará tudo o que puder para aconselhar, apoiar e acompanhar, caso a pessoa que faz a revelação esteja aberta a isso. Tudo o que a pessoa precisa de fazer é de concordar em partilhar a sua história com o padre fora do contexto do confessionário. Mas, de acordo com o ensinamento católico, o padre não deve trair a confiança de quem o procura em confissão”.
No caso de a revelação ser feita pelo próprio abusador, a situação mantém-se, diz Timothy Costelloe. “O padre fará tudo o que puder para convencer o abusador de que se deve entregar às autoridades. Por mais improvável que seja isso vir a acontecer, pelo menos a possibilidade existe. Contudo, com a passagem desta lei é quase inconcebível que um abusador se pusesse em risco de ser descoberto. Perde-se, assim, a pequena possibilidade que existia de o padre conseguir convencer o abusador a entregar-se à polícia”.
O arcebispo de Perth diz ainda que foi abordado por vários jornalistas para saber se iria instruir os sacerdotes da sua diocese a violar a lei. “Estas abordagens fazem-me lembrar as perguntas que eram colocadas a Jesus por alguns líderes religiosos que queriam enganá-lo e levá-lo a fazer ou dizer algo que depois pudessem usar para o condenar”, diz o prelado. “Em relação à questão que me foi feita pelos meios de comunicação digo apenas o seguinte. Eu irei pedir e encorajar os padres desta arquidiocese a recordarem-se de que segundo o nosso entendimento católico eles são enviados ao povo de Deus como um sinal vivo, efetivo e claro de que Jesus continua entre eles, como o Bom Pastor. Os padres desta arquidiocese compreendem bem o que significa ser um sinal vivo da presença do Bom Pastor. É isso que lhes pedirei para continuarem a fazer”.
Comissão ignorada, vítimas traídas
Uma das grandes críticas que tem sido feita é que a decisão do Parlamento da Austrália Ocidental foi tomada contra a recomendação de uma comissão parlamentar.
A comissão concluiu, por três votos contra dois, que as revelações feitas no contexto de confissões religiosas não deviam ser sujeitas à nova lei.
“É particularmente preocupante e perturbador que a opinião maioritária da comissão legislativa criada por este governo para estudar esta questão tenha sido ignorada pelo parlamento”, escreve o arcebispo Timothy.
Na mesma linha James Parker, um ativista pelos direitos homossexuais que agora trabalha para uma organização que apoia vítimas de abusos sexuais, tece fortes críticas à lei que, diz, apenas vai piorar a situação para menores e pessoas vulneráveis que sofrem de abusos sexuais.
Num artigo publicado no Mercatornet Parker fala mesmo no aumento do risco de suicídios. “Permitir às vítimas que acedam ao confessionário sem qualquer suspeita de interferência tem provado ser, vezes sem conta, uma forma de evitar que ponham fim às suas próprias vidas e de lhes dar força interior para abordarem as autoridades, para dar início ao que podem ser procedimentos legais difíceis, que por sua vez podem levar a condenações”, escreve, “com esta lei, vai acontecer o contrário”.
“Enquanto representante da única rede de apoio para vítimas e sobreviventes da Austrália Ocidental, e como sobrevivente de abusos sexuais infantis extensivos e prolongados, posso dizer sem hesitação que o governo estadual tirou das mãos da sociedade uma importante via de esperança que hoje ajuda as vítimas a sarar e que também protege crianças”, afirma ainda James Parker.
O autor do artigo inclui testemunhos que diz ter recolhido de vítimas com quem trabalha, como a de um homem que agora tem 27 anos. “Se me passasse pela cabeça que me pudessem vir bater à porta depois de eu ter ido ao confessionário enquanto criança ou adolescente tinha caído num desespero total. Tinha-me enforcado, sem dúvida”.
Outro homem, agora com 52 anos, diz que “foi um padre no confessionário que me deu a força para ir à polícia, quando estava pronto para isso. A intromissão da polícia nas confissões de menores impedirá as vítimas de sarar e será profundamente traumatizante, como uma nova traição”.
Estes testemunhos, e a sua própria experiência, levam James Parker a concluir que “não se pode encontrar um maior abuso de poder, nem imaginar uma maior traição de vidas já esmagadas”, que a lei agora aprovada.
A Austrália Ocidental é o segundo estado australiano a tomar uma decisão desta natureza. Em 2019 o Governo estadual de Vitória fez o mesmo, tendo o arcebispo de Melbourne, na altura, dito que preferia ir preso que violar o segredo da confissão. Nessa altura o Vaticano publicou uma nota a recordar a inviolabilidade do sigilo.
Recentemente o Governo francês também questionou o segredo da confissão, depois da publicação de um relatório que estima terem sido abusados centenas de milhares de menores em França ao longo dos últimos 70 anos, o presidente da Conferência Episcopal, Eric de Moulins-Beaufort, defendeu a inviolabilidade do segredo da confissão, dizendo que há coisas que estão acima das leis. Em resposta foi chamado a justificar-se ao Presidente Emanuel Macron e um porta-voz do Governo afirmou que “nada é mais forte que as leis da República”.
A Califórnia chegou a propor uma lei que interferia no sigilo da confissão, mas voltou atrás. Já o Chile aprovou em 2019 uma lei igual à agora aprovada na Austrália Ocidental e em vigor no estado de Vitória.