Bernardo Pinto de Almeida, professor catedrático na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, vai dirigir o Museu de Arte Contemporânea Nadir Afonso, em Chaves, que será inaugurado na segunda-feira. “Nadir é evidentemente um dos grandes artistas do século XX”, diz, em entrevista.
A exposição sobre a vida e obra de Nadir Afonso, que abre o Museu de Arte Contemporânea Nadir Afonso, chama-se “Chaves para uma Obra”. Porquê?
Significa duas coisas. Por um lado, a relação forte que existe com a cidade – para Nadir, Chaves era um centro. Independentemente de não ser uma cidade com grande presença internacional, era a sua cidade, e ele teve esse afecto. E Nadir teve sempre uma relação muito forte com a sua cidade e trabalhou cá intermitentemente. Constantemente, vinha para Chaves trabalhar, isolar-se, fazer a sua obra.
“Chaves como obra” significa isso, a relação com a cidade. E significa também aquilo que na obra dele define Chaves. Estamos a falar de um artista que tem quase 70 anos de obra. Morre com 90 e tal e começa com 20.
A exposição é constituída por várias dezenas de quadros. Apesar disso, não está aqui toda a obra de Nadir.
Estão representados cerca de 35 anos de trabalho, o que nem sequer é muito numa carreira de artista.
Uma primeira fase da exposição contempla as coisas de juventude e são apenas apontamentos afectivos da sua relação com a cidade. Aliás, a exposição abre com um quadro pintado pelo Nadir aos 14 anos, em que retrata uma parte da cidade, a ponte romana, a cúpula da Igreja da Madalena e algumas casas.
Depois, temos quadros da época em que ele começa realmente a sua carreira de pintor que, através de um mergulho no surrealismo, que nem sequer era expectável na obra dele, desenvolve uma obra plástica exemplar que intuitivamente já vai ao encontro de algumas das questões da arte internacional, mormente da arte abstracta.
Estamos na década de 40 do século passado…
Em 45, a guerra acabou, mas não é o momento em que já se esteja numa reconstrução e com grandes soluções para a arte. Está tudo desarrumado. A guerra devastou toda a Europa, os Estados Unidos entraram em força. E o Nadir, em 45, está a fazer obras abstractas, ao nível da melhor pintura internacional, e isso já se pode ver aqui.
A seguir, ele próprio parte dessa primeira imagem surrealista para uma abstracção mais geométrica, cada vez mais geometrizada. E então temos uma segunda fase da obra, que é o período barroco e o período egípcio, e que é a grande nave central da exposição, em que podemos ver como é que ele partiu dessa matriz surrealista abstracta, de formas orgânicas no espaço. Depois, passa para uma fase em que já é uma abstracção mais contida e mais geometrizada.
E Nadir não pára aí. Vai dar movimento ao estático.
Depois da fase mais abstracta, do período barroco e egípcio, ele passa para o “espacilimité” que é – talvez – o momento-chave da sua própria obra, o momento em que não apenas atinge um domínio absoluto da sua própria abstracção, que não é parecido com ninguém, ao mesmo tempo que introduz elementos cinéticos, de movimento, na obra. Aliás, o Nadir constrói uma máquina que permite que a pintura rode sobre si própria, como se fosse um filme. É a ideia de trazer para o campo estático da pintura o campo dinâmico do cinema. Essa máquina está aqui em exposição e chama-se “espacilimité”.
E a exposição encerra com a colecção “As Cidades”.
É a última sala que recolhe um vasto conjunto de obras de quando Nadir parte para abstracções baseadas na cidade, com imagens idealizadas das cidades. Não são cidades reais. A gente não olha para ali e diz “olha, Lisboa”, “olha, Portalegre”, “olha, S. Petersburgo”, “olha, Paris”. São evocações das cidades. Mas, tal como tinha feito no período barroco e no período egípcio, ele inscreve pequenos elementos construtivos tirados da malha das cidades, porque era arquitecto e percebia isso também de uma forma muito nítida, e inscreve-os na sua própria obra como uma espécie de textura abstracta.
Como acolheu o convite para ser o curador da exposição inaugural do Museu de Arte Contemporânea Nadir Afonso?
É sempre um desafio para um historiador de arte e um crítico de arte. O Nadir é um dos grandes artistas portugueses do século XX. E quando digo um dos grandes não estou a dizer um dos 100: estou a dizer um dos 15 ou 20 maiores artistas portugueses do século XX. Portanto, um dos muito grandes. Assim, o desafio torna-se maior, porque trata-se de o demonstrar “a priori”. Eu parto da ideia de que o Nadir é um dos maiores artistas portugueses pelas razões que explico, nomeadamente no texto do catálogo e em muitos dos textos que escrevi antes e no meu próprio livro sobre a pintura portuguesa no século XX. E trata-se de sustentar esse argumento a partir de um critério sólido, de uma coisa que se possa explicar e perceber rapidamente. Cada sala, cada momento, obriga-me a escolher as obras que acho mais representativas desse mesmo período e aquelas que comprovam mais completamente o ponto de partida.
Podemos dizer que Nadir foi um artista muito criativo?
Nadir é um pintor compulsivo. Ele vivia para trabalhar. Não cuidava nem do sucesso nem da promoção nem do seu reconhecimento. Ele trabalhava compulsivamente, obcecado com a sua própria obra. Isso é um caso muito interessante. E creio que esta exposição o demonstra. Nadir é evidentemente um dos grandes artistas do século XX. Não é que isso não se soubesse, mas não se falava muito. Talvez a partir deste museu seja possível tornar isso mais evidente.
Nadir é um grande artista em diálogo com a arte internacional. A ideia do museu é criar as condições para que se faça a releitura – não é a minha, a minha fica nesta exposição, ficará noutra no futuro, sou director do museu a convite da câmara, e continuarei a fazer exposições no museu. Mas o que mais quero é, sobretudo, convidar comissários internacionais para virem eles próprios fazer releituras da obra de Nadir para que esse lugar que eu atribuo seja confrontado com pontos de vista internacionais e, espero eu, corroborado.
Chamei também para estar comigo na direcção o professor José Jiménez da Universidade Autónoma de Madrid, uma figura absolutamente incontornável da cultura espanhola e, ele próprio, irá porventura organizar coisas a partir do Nadir ou a partir do espaço.
É o director do museu?
A câmara fez-me o convite e eu aceitei. Não há nenhum protocolo escrito. O senhor presidente da Câmara convidou-me formalmente para ser director do museu, eu pus um pequeno número de condições que tem a ver com meios mínimos de funcionamento…
Senti isso como uma certa obrigação, por várias razões. A defesa do Nadir como grande figura, a própria defesa do edifício como grande centro que pode ser um centro de referência em Portugal e um centro definidor de uma boa política de regionalização. Não a ideia da região transformada em um padrão para o país. Não se trata de por o país a comer presunto de Chaves, não é essa a ideia. É pôr Chaves no mapa dos sítios onde é possível ver arte nacional e internacional ao mais alto nível.
O museu vai acolher exposições de outros artistas portugueses e estrangeiros, mas Nadir terá sempre lugar cativo?
Absolutamente. É fundamental que nunca se perca de vista que o nome do museu é Museu de Arte Contemporânea Nadir Afonso e, portanto, se o Nadir não estiver a ser mostrado num determinado momento não quer dizer que tenha sido esquecido, quer dizer que o seu nome continua a ser o pretexto para uma acção cultural que ele próprio teria sancionado. O Nadir, ele mesmo, como artista, sofreu sem protestar contra isso, porque era um bravo.
Ou um génio, mas nem sempre reconhecido…
Não foi sempre reconhecido à escala da grandeza da sua obra que está à vista. Não é preciso dizer muito mais porque qualquer pessoa vê. Julgo que o Nadir, se fosse vivo, ficaria contente ao ver que há um museu com o nome dele, que vai tentar fazer com outros artistas aquilo que muitas vezes não foi feito com ele: um reconhecimento, uma atenção, uma promoção no sentido cultural, não comercial, do termo. Dar uma visibilidade àquilo que merece ser visto.