Depois de três jornadas de protestos violentos e distúrbios nas ruas de toda a Catalunha, Foment del Treball, a patronal catalã, reagiu com um comunicado em que alerta para “o risco de ruptura do clima de convivência e tolerância que caracteriza a sociedade catalã”.
Com uma greve geral na região em curso esta sexta-feira, a associação mostra-se especialmente preocupada pela violência nas ruas de Barcelona e apelava o diálogo entre a Catalunha e o resto de Espanha para procurar soluções à margem da violência. “Condenamos a violência, advertimos do risco para a actividade económica e, o que é pior, para a convivência pacífica entre cidadãos que se definem pelo seu carácter tolerante, pacífico e solidário”, pode ler-se no comunicado da Foment del Treball.
A patronal também não poupa o governo autonómico de Quim Torra ao pedir “responsabilidades às instituições públicas” e aos partidos por “estimular as mobilizações, as manifestações e as ocupações de infraestruturas estratégicas”. O comunicado recorda que a Generalitat, o governo autonómico, “tem o dever e obrigação” de “preservar a segurança dos cidadãos e o normal funcionamento dos serviços públicos no respeito da legalidade.”
“A reputação da Catalunha e Barcelona constitui um capital de elevado valor que produz grandes lucros a diferentes sectores económicos e industriais num dos principais e mais atraentes territórios do sul da Europa”, alertam os empresários preocupados em evitar “o risco para toda a actividade económica e projecção internacional de Barcelona”.
Ao mesmo tempo o ministro do interior em funções no governo espanhol Fernando Grande-Marlaska garantiu que não haverá “impunidade” com os responsáveis pela vaga de violência dos últimos dias que, lamentou, estão a causar um grave dano à imagem da Catalunha no mundo.
Grande-Marlaska não deu mais detalhes sobre quem são os responsáveis para “não interferir” no êxito da investigação, mas assegurou que o governo pensa nos cidadãos “desorientados e de certo modo órfãos” e para o seu bem-estar a acção policial irá prosseguir nos próximos dias e durante o tempo que seja necessário.
Com este pano de fundo, de que o comunicado da Foment del Treball ou as declarações de Fernando Grande-Marlaska são duas das mais recentes peças de um complexo puzzle, o analista político Manuel Campo Vidal percorre, em entrevista à Renascença, as possíveis saídas de uma crise que “está a causar um enorme dano de imagem a Barcelona”.
“Uma saída seria um Estatut – o acordo autonómico – modificado e submetido a referendo”, diz Campo Vidal que moderou todos os debates históricos da democracia espanhola: Aznar-Gonzalez, Zapatero-Rajoy, Rajoy Sánchez, entre outros.
Ex-presidente da Academia Espanhola de Televisão, Manuel Campo Vidal não poupa o líder autonómico Quim Torra “tem-se comportado como um activista a incitar a manifestações” e elogia Pedro Sánchez um político em Madrid com ‘predisposição a não ‘histerizar’ ainda mais a crise”, diz.
Quanto às consequências da crise catalã para as eleições gerais de 10 de novembro, Manuel Campo Vidal reconhece que o PSOE e partidos moderados tendem a perder votos “porque nos conflitos crescem os extremos como se fosse um ‘arco-voltaico’.
Ouça aqui a entrevista do jornalista José Bastos:
Este grau de violência era previsível?
Estava prevista uma vaga de protestos e que durasse aproximadamente uma semana, os protestos iniciaram-se segunda-feira, mas não com esta característica tão violenta e tão desafiante. Já terá mesmo havido uma vítima mortal, um turista francês com problemas cardíacos que faleceu por sobre-esforço devido ao trajecto percorrido a que foi obrigado pelo bloqueio do aeroporto de El Prat. Realmente o dano reputacional produzido a Barcelona e à Catalunha é muito, muito alto.
Creio que os próprios dirigentes independentistas estão muito preocupados e surpreendidos com esta vertigem da cidade com ruas bloqueadas, barreiras a arder, como Paris com as acções dos “coletes-amarelos”.
E com os desordeiros a sonhar transformar Barcelona em Hong Kong – assim o disseram alguns deles – mas ainda não se chegou lá. Em resumo: estava prevista a mobilização no pós-leitura da sentença, mas não este grau de violência.
Comos se explica o grau de ambiguidade política de Quim Torra, o presidente da Generalitat que, por um lado, produz declarações que podem alentar os protestos - já participou em marchas e, por outro, é o responsável político por enviar a polícia autonómica controlar as violações da ordem pública?
Na realidade Quim Torra não actua como um presidente das instituições autonómicas catalãs. Todos sabemos tratar-se, fundamentalmente, de um activista. Quim Torra não produziu actos de gestão governativa na Generalitat, o governo autonómico. É um homem que incita às manifestações que a partir do seu lugar nos cargos institucionais convida à participação dos independentistas e estimula os chamados CDR's, comités de defesa da revolução.
Portanto, Quim Torra aposta na agitação, mas, por outro lado, não tem mais remédio que ter de deixar actuar a polícia autonómica catalã - os Mossos D'Esquadra - que como têm os seus antigos comandantes em Tribunal, na Audiência Nacional, em particular o comandante Josep Lluís Trapero pela gestão dos acontecimentos em Setembro e Outubro de 2017 sabem que agora, ou respondem às ordens judiciais, ou a polícia autonómica catalã pode ser, a qualquer momento, alvo de uma intervenção do governo de Madrid.
Esse é um elemento que conduz a Catalunha a uma contradição realmente absurda. Por um lado o presidente da autonomia catalã não tem mais remédio que os seus subordinados façam actuar a polícia contra os manifestantes quando ele mesmo, Quim Torra, participa nas manifestações e está a mobilizar a população para os protestos. Realmente é um quadro kafkiano.
Quais são as raízes sociais deste movimento chamado ‘tsunami democrátic’? Nas imagens dos protestos observa-se uma esmagadora maioria de gente jovem. Há uma outra Catalunha que não se manifesta e tem medo?
Infelizmente os resultados das eleições desenham a Catalunha como uma sociedade profundamente dividida. Quase a metade do eleitorado desenvolve algum tipo de simpatia ou são mesmo partidários do independentismo. Outra metade, ou mais que a metade do eleitorado está realmente aterrada e com vontade de que a Catalunha continue a ser parte de Espanha.
Portanto, esta é uma sociedade dividida. E onde há uma sociedade dividida estão divididas muitas famílias. Estão divididos muitos companheiros de trabalho. Estão divididos os próprios polícias. Estão divididos os funcionários públicos, mesmo que não expressem publicamente. É um cenário muito complexo. Agora, no seio da quase metade simpatizante da independência torna a haver mais outra divisão. Não apenas entre os partidos políticos, mas entre aqueles que pretendem protestar de forma pacífica e os que querem manifestar-se de forma violenta para radicalizar ainda mais as coisas.
O EL PAIS perguntava num artigo: e se nessas manifestações há um morto? Bom, parece que, como consequência de todas as manifestações, já há uma vítima mortal: o turista francês que sofria de problemas cardíacos e teve de andar, arrastando uma mala, 4 km com toda a angústia de poder perder o avião no El Prat.
Bom, pode haver um morto nos confrontos, pode haver mais. O menos relevante é o nome dos protestos. Agora chama-se 'tsunami democrático' como podia chamar-se "comités de defesa da revolução" ou qualquer outra coisa. Aqui na Catalunha há um grupo disposto a exercer a violência.
As circunstâncias são agora mais adversas que no desafio secessionista de 2017 com divisões no campo independentista e o cansaço do conjunto da cidadania. Onde querem chegar agora os independentistas?
A pulsão independentista catalã não vai acabar nunca porque há uma base muito forte da população a apoiar a secessão. Antes os independentistas eram 1/4 da população, agora pode ser que sejam mais de 25%. Portanto, esta tendência vai manter-se.
O que acontece é que a fase deste jogo começado há 2 anos - Setembro e Outubro de 2017 - com a autodeclaração de independência e com a fuga do ex-presidente da Generalitat, Carles Puigdmont, e que levou a uma intervenção policial desmedida e exagerada por parte do governo de Espanha é uma fase que está a finalizar com a leitura das sentenças por parte do Supremo. Mas só acaba uma etapa. O independentismo sabe que nesta etapa há coisas que ficaram muito claras.
A primeira é que o estado espanhol é um estado forte e democrático quando os independentistas faziam crer o contrário. Os secessionistas diziam que o estado dava passos atrás e que em Espanha não se respeitam as liberdades. Ficou absolutamente claro que estavam enganados. os independentistas também diziam: 'estão à nossa espera na Europa'. Não. Ao contrário: na Europa há um grande temor a que Catalunha ou qualquer outra autonomia de qualquer outro país europeu se torne agora independente, porque há 23 territórios com algum tipo de tentação secessionista.
Por exemplo, Escócia no Reino Unido, a Córsega na França, uma parte da Itália, etc. Portanto outra mentira dos secessionistas era a de que a Europa esperava a independência da Catalunha.
As sentenças foram duras e esta fase já está perdida para os independentistas.
Mas o Brexit e a exigência da Escócia de um novo referendo em 2021 não pode introduzir nova perturbação e influir na percepção internacional da questão catalã?
Não. O Brexit é uma desgraça em primeiro lugar para o Reino Unido e para toda a Europa e vamos pagar as suas consequências durante muitos anos e porque um eventual referendo na Escócia será para continuar na União Europeia. Bruxelas já deixou claro que não quer nenhum novo território como membro se resultar de uma cisão num país europeu.
Um referendo na Escócia seria para continuar na Europa e a Catalunha, num cenário de independência, teria primeiro de ser admitida na União Europeia, mas Bruxelas não quer que essa independência se produza. Neste caso da percepção internacional não prevejo qualquer alteração.
Mas para sair deste ponto morto em que ambas as partes estão estancadas há quase uma década. Há eleições gerais dia 10, Casado pede a Sánchez que reintroduza o artigo 155 - controlo da Catalunha por Madrid -, que sinais devem ser projectados a partir de Madrid?
O primeiro sinal que está a ser projectado pelo governo de Pedro Sánchez é um sinal de serenidade, um sinal de firmeza face aos acontecimentos, mas de serenidade e de diálogo com as forças políticas, particularmente com o PP a força tradicionalmente dominante à direita, agora na oposição, e com o partido dos Cidadãos que era centrista, mas tem vindo a inclinar-se mais para a direita.
Portanto devemos ultrapassar esta semana, vamos ver que grau de adesão tem a greve geral prevista para esta sexta-feira, porque já um cansaço geral dos últimos dias e esperemos que a situação não se agrave. Mas a previsão foi a de manifestações ao longo de toda a semana, e assim está a acontecer, com marchas uma a sair de Tarragona a chegar a Barcelona e até ao fim de semana, domingo incluído, há lugar a inúmeras mobilizações.
Com este pano de fundo o previsível é o governo de Pedro Sánchez pretender manter abertos os canais de diálogo, mas procurando a serenidade ao tentar sentar à mesma mesa distintas sensibilidades, mas, se puder, não recorrendo a medidas excepcionais como seria o artigo 155 - já aplicado há em 2017 durante algumas semanas - ou, por outro lado, aplicar a lei de segurança nacional.
Mas Madrid não tem de propor um novo Estatut (acordo de autonomia) para a Catalunha, uma nova lei de financiamento autonómico, uma rota mais federalista, em suma, uma solução que marque uma agenda política de diálogo Madrid-Barcelona?
Uma saída possível seria um Estatut (acordo de autonomia) modificado e inclusivamente submetido a referendo para tentar estabilizar a situação. Porque é verdade haver uns 80% de cidadãos dispostos a ser consultados nas urnas, mas muitos desses querem votar não a independência, mas sim maior autonomia. Não há que fazer confusões neste ponto.
Portanto um caminho seria o de alterar o Estatut resolver questões pendentes de transferências de competências e de um melhor financiamento e referendar todos estes pontos junto do eleitorado. O tipo de referendo que muitos independentistas não querem, porque seria abrir uma nova etapa de relativa estabilidade e tranquilidade num problema sem resolução à vista porque há uma percentagem significativa da população que defende a independência. Está no seu direito.
A democracia espanhola permite a esses catalães ter partidos organizados para defender a independência o que tem de ser aceite sem nenhuma histeria e em total tranquilidade.
Por sorte, a liderar o governo de Espanha está neste momento um político, Pedro Sánchez, com uma predisposição política a não 'histerizar' a situação, mas, claro, isto vai depender também do que continue a ter nas ruas e do que aconteça com esta violência urbana que está a produzir um grande dano à convivência na sociedade catalã e a provocar grande inquietação aos cidadãos na Catalunha e em toda a Espanha e, desde logo, a causar um grave dano ao turismo e à imagem internacional de Barcelona e da Catalunha.
Associações empresariais alertam para os graves prejuízos causados à economia catalã pelos confrontos, mas também há riscos reputacionais para uma das cidades mais cosmopolitas do mundo, Barcelona, e para o seu turismo.
O dano reputacional que está a ser causado a Barcelona é enorme. A cidade, é verdade, tem um crédito internacional muito alto por sempre ter sido uma cidade cosmopolita, mas também ter a imagem de uma cidade vibrante capaz de ter organizado umas Olimpíadas exemplares, uma cidade de negócios e uma cidade muito desejado pelo turismo. Mas este crédito pode acabar, pode resultar gravemente danificado.
Certamente haverá milhares de pessoas que face a esta turbulência dizem, 'mais à frente iremos a Barcelona, logo veremos', porque neste momento não faz sentido ir para um lugar onde podes ser surpreendido por uma vaga de violência como a que estamos a viver por estes dias.
Os pronunciamentos da classe empresarial, dos principais jornais de Barcelona e de outras forças cívicas no sentido de que 'as coisas não se fazem assim' e que é necessário introduzir a serenidade são posições que, defendo, nos podem finalmente conduzir a uma saída.
Uma posição em aliança com milhares de pessoas que não querem manifestações e não querem a independência ou com milhares que pretendem a independência, mas a querem por via pacífica e democrática. Faço votos de que nos próximos dias se possa ir controlando a situação do ponto de vista da ordem pública e que até ao fim de semana, domingo incluído, se continue a ter manifestações, mas pacíficas.
E quanto a efeitos da crise catalã nas eleições gerais de 10 de Novembro? À direita o PP está a subir e o PSOE acusa desgaste nas sondagens...
Quando se produz uma situação crítica como a que se vive na Catalunha os extremos da polaridade política são sempre reforçados. Portanto, os próprios partidos políticos independentistas vão ter reforçar o seu eleitorado que decorre do clima emocional gerado pelo impacto de duras sentenças judiciais, mas que a direita espanhola queria ainda mais severas. Até o Ministério Público espanhol queria na acusação ver penas mais duras.
Assim, antecipo que vá surgir uma votação significativa nas forças independentistas e que a direita vá subir não apenas pelo efeito de uma recomposição interna em curso - o PP de Pablo Casado a descolar dos Cidadãos de Albert Rivera - mas também porque a crise catalã está a alimentar a direita de votos via PP e através do VOX de Santiago Abascal na extrema-direita. As sondagens apontam nesse sentido e uma situação emocionalmente tão tensa políticamente e tão crítica nas ruas pode acabar por influir nas intenções de voto.
Num cenário destes os extremos reforçam as suas posições e os moderados que ocupam posições mais serenas tentando pacificar - desde logo onde se encontra Sánchez, o PSOE e outras forças políticas - tendem a ter menos possibilidades de crescer porque insisto: nos conflitos crescem os extremos como se fosse um arco-eléctrico, um 'arco-voltaico'.