Num momento em que o país, como o mundo, é dominado pela questão da pandemia, o economista Pedro Pita Barros deteta "uma espécie de deserto de reação”.
Em entrevista à Renascença, Pita Barros considera que Governo e autoridades da saúde decidem “sempre um pouco atrasados” sem capacidade de procurar mecanismos que coloquem o sistema “um pouco mais à frente” do vírus.
Para o professor catedrático da Universidade Nova de Lisboa, a objetivo devia ser, agora, recuperar “o atraso na assistência aos doentes”, numa parceria entre o SNS e o setor privado, bem como o regresso às aulas: “mais importante do que saber o que vai reabrir nas próximas semanas, preparar a abertura do novo ano escolar “deveria ser a nossa preocupação central”.
O que está melhor e pior na saúde em Portugal?
Acho que as duas coisas se respondem com a mesma situação que é questão da pandemia. Acabamos por ter uma resposta à pandemia que no início nem foi má, o nosso sistema de saúde conseguiu responder até de uma forma que não era antecipável há uns tempos. Ajustou-se e teve a capacidade de virar recursos e de mudar a organização para responder à pandemia, sendo que a melhor parte acabou por ser o verão do ano passado, que passamos de uma forma relativamente tranquila e até com alguma recuperação da atividade que tinha ficado para trás.
O pior foi também a pandemia, agora com a parte a seguir ao Natal onde claramente ficamos complemente submergidos por uma terceira vaga que, em alguns aspetos, podia ter sido melhor antecipada a partir do final do verão. E lembro-me que se falava num famoso plano outono/inverno que acabou por não acontecer: caímos numa situação em que tivemos uma sobrecarga no sistema de saúde. Portanto, de certa forma, o melhor e o pior acaba por cair na questão da pandemia e da resposta à pandemia.
Mas podemos dizer que, um ano e meio depois do início da pandemia, não aprendemos nada com o que se passou em 2020?
Aprendemos algumas coisas, mas mais do que aprender é preciso conseguir transformar o que aprendemos em ação e nem sempre parece que tenhamos conseguido fazer isso da melhor forma. E, embora isso seja verdade para o sistema de saúde, é verdade em geral para a forma como nós, como sociedade, temos lidado com a própria pandemia.
Sabemos alguns cuidados que é preciso ter, sabemos que é preciso estar mais em cima do que está a acontecer, reagir de uma forma mais rápida, seja individualmente ou coletivamente através da decisão pública, e por vezes dá sensação que mesmo assim ainda não construímos todo o nosso processo de decisão toda nossa capacidade de reação ao ritmo a que acaba por ser necessário por causa do vírus.
E quanto aos doentes não Covid que acabaram por ficar para trás por causa da pandemia. A estratégia que está a ser seguida para recuperar a assistência que ficou por fazer tem sido a correta?
Dá-me a sensação que poderia haver uma estratégia mais clara. Temos de ter em atenção que há dois tipos de doentes que ficaram para trás: uns que não terão procurado contacto com o sistema de saúde e, portanto, auto limitaram-se na procura de soluções para os problemas de saúde. Em relação a esses é preciso perceber como é que lhes devolvemos a confiança. E depois temos aqueles que tiveram cancelamentos e adiamento de situações que precisam de ser tratados. São dois grupos diferentes que precisam de atenções diferentes.
Concentrando-me apenas naqueles que tiveram tratamentos atrasados, que tiveram cancelamentos, aí temos duas grandes possibilidades: a primeira delas, é tentar fazer uma recuperação o mais rapidamente possível, o que só pode acontecer se houver uma colaboração de todo o sistema de saúde e, neste caso, claramente o Serviço Nacional de Saúde tem de ter um sistema de contratar atividade no setor privado para recuperar o mais depressa possível usando capacidade que esteja disponível ou ter algo que seja um pouco mais planeado e mais faseado no tempo mas que permita também transformar a própria forma como o Serviço Nacional de Saúde trabalha.
Em alguns sítios haverá formas de recuperar atividade que também implique uma reorganização interna que permita prestar um melhor serviço à população e consiga até preparar melhor situações futuras de choques que possam vir a ocorrer.
Mas isso não deveria ter acontecido já na fase em que tínhamos menos casos?
Até certo ponto eu esperaria que tivesse acontecido mais essa aprendizagem na fase em que tivemos menos casos. Quando há um ano, em maio, junho, julho, agosto, tivemos uma certa folga, podíamos ter aprendido melhor a fazer isso e mesmo na relação com o setor privado tinha sido nessa altura o momento de estabelecer, de forma clara, quais eram os contratos que existiriam para a colocação de atividade ou mesmo para a participação num esforço de ponta e sobrecarga que houvesse, como acabou por acontecer.
Mas encontramos outras áreas que dependem apenas do setor público, onde essa aprendizagem também demora tempo: se nós recuarmos seis meses, ou nem tanto, quando se começou a preparar a saída do confinamento, que correspondeu à terceira vaga, insistiu-se muito na necessidade de seguir as pessoas, controlar as cadeias de transmissão e interromper o contágio. De certa forma dá a sensação que mesmo esse esforço, em que se dizia que se tinha aprendido que era preciso ter uma politica de testagem e de isolamento das cadeias de transmissão muito rápida, não me parece que tenha acontecido.
Portanto, entre o que se aprende, no sentido que é preciso fazer, e depois a ação que é feita parece haver um espaço, uma espécie de deserto de reação A única exceção tem sido o processo de vacinação em que o esforço tem sido grande e o funcionamento do processo tem tido as alterações consoante as necessidades do momento, muitas vezes a reagir no próprio dia ou em poucas horas a choques inesperados, aí vê-se o contra exemplo que não encontramos no resto do sistema.
Fica preocupado com os custos que os doentes que ficaram para trás vão ter no futuro, em termos de saúde, porque chegam em estádios mais avançados da doença e com o que isso representa também para o SNS?
Mais do que os custos monetários preocupam-me os custos para a saúde dessas pessoas. Nós não sabemos quantas dessas situações podem tornar-se perdas de saúde irreversíveis e isso é muito preocupante. Chegar tarde pode ser dramático para as pessoas que noutras situações, se chegassem mais cedo, teriam um desfecho favorável. Isso sim é preocupante.
Com o avanço da vacinação há cada vez mais pessoas a pedirem a abertura de mais setores da economia. Acha que está na altura de termos outras prioridades para além da pandemia?
Uma das coisas que nós aprendemos nestes quase 18 meses de pandemia é que a economia e a saúde andam par a par. Não podemos pensar que podemos abrir a economia e esperar que a questão da saúde se resolva, tal como também não podemos pensar só em termos estritamente sanitários porque a sociedade precisa de funcionar. O equilíbrio não é fácil.
Tenho a noção que, com o andamento da vacinação, é possível pensar em alguma abertura, mas o que nós estamos a observar em vários países é que ainda não percebemos como funciona a nova variante Delta e como é que está a interagir com a vacinação. Enquanto não percebemos como funciona, abrir demasiado rápido pode ser mau conselheiro. O exemplo da Holanda talvez seja o mais claro: uma abertura muito rápida, mesmo com o processo de vacinação em curso, acabou por corresponder a um disparar de casos e a um descontrolo que levou a uma sobrecarga do sistema de saúde.
Portanto, vale a pena pensar com calma como é que vamos reabrir. E claramente tem de se aumentar a capacidade de testagem para detetar rapidamente situações que precisem de ser isoladas e não tenho a certeza que tenhamos os melhores mecanismos para fazer isso. Apesar de haver uma estratégia para a testagem massiva não é claro como é que tudo está articulado de modo a dar as respostas para o funcionamento imediato.
Provavelmente, preparar neste momento o que vai ser setembro, com o início da atividade escolar, será mais importante do que pensar o que é que vai reabrir nas duas ou três próximas semanas. E isso deveria ser a nossa preocupação central neste momento. Como é que nós, a um prazo de cerca de dois meses, conseguimos planear essa reabertura maior, mesmo que agora tenhamos que ir de uma forma um pouco mais lenta.
Também neste momento vale a pena perceber o que é que vai acontecer em Inglaterra, que iniciou esta semana uma espécie de “big bang” de retirar restrições, e eles esperam algumas consequências. Vamos perceber se essas consequências são mais fortes ou menos fortes do que estava a ser previsto pelas autoridades inglesas e com isso nós podemos também aprender. De qualquer forma, centrava já a atenção na reabertura das escolas, como é que vamos programar essa componente, porque a verdadeira reabertura nunca seria exatamente agora, será sempre em setembro
E isso já deveria estar a ser divulgado?
É muito importante isso já estar a ser pensado, mas também a ser anunciado e a ser delineado, até porque outra das lições que nós podemos tirar deste ano que passou é que, a partir do momento em que passamos a ter regras mais simples sobre o que acontece em cada concelho, de acordo com o número de casos, a aceitação das medidas e dos recuos e avanços foi muito mais simples. Saber exatamente quais são os planos contingentes que temos, saber que se acontecer isto a ação será esta, de uma forma quase automática, não só permite ter uma capacidade de reação mais rápida, como permite que toda a gente antecipe, e isto significa também toda a sociedade, a comunidade escolar, os pais e os próprios profissionais de saúde. Todos podem planear como é que vão reagir às diferentes circunstâncias que possam acontecer e daí a importância de ter um plano claro.
E quanto ao Plano de Recuperação e Resiliência, parece-lhe que os objetivos traçados na área da saúde são aqueles de que o país precisa?
Não me deixa totalmente satisfeito e parece-me haver mais uma intenção de realizar investimentos, alguns de que já se fala há 10 anos ou mais, mas que não havia condições financeiras para concretizar, em vez de estarmos a pensar no sistema de saúde que nós gostaríamos de ter daqui a dez anos. Essa parte parece-me menos feliz.
Mesmo algumas medidas parecem retiradas de um catálogo de ideias que várias pessoas foram apresentando, mais do que uma visão integradora de transformação do sistema de saúde numa lógica dupla que seja de servir melhor a população (que é o principal papel de um sistema de saúde), mas também como é que essa forma de fazer a transformação permite ter em conta também preocupações de desenvolvimento económico e, de certa forma, poder ajudar as economias nacional e local permitindo alguma recuperação também pelo lado da área da saúde.
Há aqui uma espécie de visão integradora que me parece que faltou. E faltou, no caso da saúde, praticamente desde o início, desde a primeira versão do que foi chamado plano Costa Silva até à última versão disponibilizada.
Na prática, o que é que mudaria no plano?
Se pensarmos em coisas concretas eu gostaria de pensar em dois aspetos centrais: um voltado para as pessoas, tendo em conta que uma das necessidades que nós vamos ter em termos de funcionamento do sistema de saúde tem a ver com a organização de uma forma mais flexível de chegar às pessoas. Vamos ter uma população que vai ter condições crónicas, mas que não vai querer estar institucionalizada e cada pessoa vai querer ter, de certa forma, um plano individualizado de cuidados de saúde e isso implica flexibilidade.
Investir num sistema de saúde preparado para diferenciar pessoas numa forma que as ajude a viver melhor é algo que nós poderíamos pensar, bem como em instrumentos concretos, como por exemplo a hospitalização domiciliária. É algo que corresponde a este espírito, já em curso, e que teve um grande impulso durante a pandemia e que deveria ser pensado mais no plano de resiliência, na área da saúde, como uma forma segura de introduzir flexibilidade no próprio funcionamento hospitalar.
Do outro lado, da ajuda ao desenvolvimento económico, como é que nós conseguimos pensar ou criar formas de aquisições de bens e serviços dentro do Serviço Nacional de Saúde ou dentro do sistema de saúde. Como é que podem ser organizados de forma a estimular também alguma inovação por parte do tecido empresarial português que depois possa ser escalado para nível internacional e possa ter uma capacidade de reprodução económica, digamos assim, importante.
É certo que nunca nenhuma atividade económica na área da saúde será sustentável enquanto atividade económica por causa do SNS mas pode dar uma espécie de campo de ideias, para depois se conseguir ter um salto para uma internacionalização que essas empresas acabarão por ter de ter se quiserem vingar a longo prazo. E este duplo funcionamento, quer para as pessoas quer para o tecido empresarial, podia ser pensado de outra forma. Eu consigo pensar em mecanismos, como criar pequenos grupos ou pequenos ecossistemas de inovação à volta do próprio sistema de saúde que envolva o tecido empresarial, que envolva a satisfação das necessidades das pessoas com alguma inovação, que seja possível por parte do tecido empresarial que depois seja transformada a nível internacional.
Eu sei que há restrições ao que o Plano de Resiliência podia ter, até que estão na base do que foi a construção e aprovação desse plano a nível europeu, mas mesmo dentro dessas restrições creio que poderíamos ter tido uma ambição um pouco diferente.
Em termos de diagnóstico estamos bem ou estamos mal?
A questão é saber se, com a informação que havia no momento da decisão, foi tomada a melhor decisão possível e aí dá-me a sensação que, frequentemente, os nossos diagnósticos não estão mal, embora às vezes tenhamos que voltar atrás para corrigir erros que são feitos. O que talvez me cause mais impressão é nós não termos ainda nenhum mecanismo claro de perceber como é que a sociedade em cada momento está a responder à pandemia.
Nós temos aquela famosa matriz de risco, mas tudo isso se baseia em informação estatística que quando nós a temos já o vírus está um pouco mais à frente, portanto, andamos sempre um pouco atrasados. Nós devíamos ter outras formas de perceber socialmente como é que as pessoas estão a reagir às preocupações com o vírus, que comportamentos é que estão a ter e agir em cima desses elementos. Não é fácil, mas provavelmente se tivesse havido a ideia de criar um painel de pessoas de várias idades que fosse ouvido de 15 em 15 dias ou semanalmente, se soubéssemos qual o grau de preocupação das pessoas o é que elas estão a mudar ou não estão a mudar no seu dia a dia, será que nós podíamos ter previsto, com mais antecedência o comportamento dos jovens, que parecem estar a ter uma maior taxa de infeção?
Será que podíamos ter percebido melhor como é que diferentes padrões de mobilidade, após as diferentes fases de saída do confinamento, influenciaram o reacender de alguma pandemia? Portanto, termos instrumentos de auscultação da sociedade, ou de seguimento da sociedade, que nos permitissem estar mais em cima da situação é talvez o elemento que me parece faltar.
Portanto a questão não é só estarmos a conseguir fazer bem o diagnóstico, é estarmos sempre um pouco atrasados e não tivemos ainda a capacidade de procurar mecanismos que nos pusessem um pouco mais à frente. Porque, se a decisão é baseada em informação que já se sabe que está desatualizada, tem sempre de andar a correr atrás do que já aconteceu.