Casa cheia, clientela não falta. Nas ruas da Baixa do Porto, ainda há mercearias como “dantes”, com corredores amontoados de gente e montras recheadas.
“A gente olha e vê. E olhos compram, não é?”, diz à Renascença Teresa Bravo, de 72 anos. Soma muitos anos a comprar e a elogiar este tipo de estabelecimentos "que têm tudo, e tudo de qualidade”.
Quem ali vai, por costume, procura produtos que não se encontram tão facilmente nas grandes superfícies. Outros, sorrateiros, espreitam por entre as vitrines enfeitadas com bacalhaus, vinhos e biscoitos amanteigados. Entram por curiosidade e saem com promessas de regressar.
“Nem que não se compre nada, visitar estas lojas no Natal faz parte”. Para as clientes habituais Carolina e Ana Silva, mãe e filha, a quadra só se completa com uma visita "à Januário". É uma daquelas tradições mantidas por quem se orgulha em dizer que "era do seu tempo".
"Ai, quando vinha com a minha avó, o cheirinho..." Já com 96 anos de história, a loja da Rua do Bonjardim recebe muita gente que mora longe, mas “vem atrás dos aromas dos avós”.
Isabel Marques, 56, é uma das seis funcionárias desta mercearia fina. Leva mais de vinte anos de trabalho e recorda “o cliente certinho” que marcava presença todas as semanas. Mas a conversa continua em dia.
“Gosto muito de falar com as pessoas, não só de atender. Acabo por conhecer a família, os filhos e depois os netos”, conta.
E são agora os netos já adultos, enamorados pelos sabores da infância, que regressam ali e lançam para o ar a saudade de desfazer o açúcar dos rebuçados oferecidos, uma vez por outra. Isabel não resiste em adoçar essas memórias. “‘Ah, lembro-me quando me davam um rebuçado’ e eu acabo por dar um para matar as saudades."
“Ora, é tudo?”, pergunta na caixa à cliente. Parece que não. E, se fosse por Isabel, a conversa alongava-se e continuava a mostrar cada produto da mercearia, sempre com um olhar rendido. “É um trabalho mais tu cá tu lá”.
Lá escondida no cantinho, está Rosinha a mimar outras bocas. Camuflada pelos tons acastanhados da madeira que forra a loja, é na garrafeira que faz os preparos e enlaça os cabazes de Natal. “Atendo o telefone e, muitas vezes, os clientes dizem-me: ‘É para fazer como a Rosinha costuma sempre fazer'."
A mesa está repleta de merendas, canetas, palha, fita-cola e listas de encomendas para que não falte nada a ninguém. “Dizem-me ‘quero gastar tanto’ e, dentro do que querem gastar, eu faço”, revela enquanto aconchega cada produto com critério.
“Há clientes que vêm até aqui e eles gostam, pelo menos, tenho uma série deles que deixam ao meu cuidado”. Na verdade, embrulha mais do que um cabaz.
Rosa Santos, 59, é da casa “desde o tempo do senhor Januário”. Já lá vão 44 anos. “Estou na terceira geração." É do tempo em que se fazia a torrefação do café e se afixava no exterior: “Casa Januário vende o melhor café”. Mas a fama não passou, "longe disso".
“Olhe, eu venho às cevadas, à aletria e às alheiras”, despacha Albertina Lopes, de 72 anos. “Começando pelas meninas e acabando nos queijinhos, gosto de tudo”, ri.
“Não se esqueça das especiarias”, lembra Isabel. E Albertina rebobina, satisfeita: “É o que eu estou a dizer. De tudo, de tudo”. E durante o ano todo.
Metida no escritório, Conceição Marques, 60 anos, calcula o requinte ao pormenor, no meio da papelada, para que as coisas funcionem bem. “Contas é com ela”, despacha Rosinha. “É um movimento diferente. Mas continuamos a ter clientes bastante fidelizados, até na camada mais jovem que preferem mais a loja de tradição”, confirma Conceição.
“Não, senhora. Só fechamos às 19h00”, ouve-se. A correria pelos corredores nem sequer acompanha o ritmo das mãos pequenitas, mas robustas de Lídia Carvalho, 66. As espinhas do bacalhau estalam e a lâmina que o divide em postas já nem a assusta.
Os músculos do corpo de Lídia já decoraram tudo que tinham para decorar. Nem precisa de olhar e vai trocando ao balcão palavras de amor e consolo aos clientes. Por mais ou menos fiéis que sejam à Casa Chinesa, na Rua de Sá da Bandeira. “Se eu chegar a janeiro, vai fazer 50 anos que estou aqui”, partilha.
É um negócio e um costume que “passa de geração para geração”. Vê a juventude a chegar à “meia-idade”. “Vêm os filhos, já vêm os netos e esperemos que venham os bisnetos, mas já não deve ser para o meu tempo”, agoira Lídia.
“Sinto-me em casa”. O tom amarelado que reluz nas paredes dá a ilusão de que nada mudou em 84 anos. E, António Jorge, de 61 anos, parece que nem dá conta dos anos que passaram. “Já me conhecem desde miúdo. Aos meus cinco anos, a empregada deixava um rolo de papel com a lista e ia lá uma carrinha entregar a encomenda na casa dos meus avós”, recorda.
“Como está muita gente, venho só buscar uns sortidinhos para os netos”. Ilda Nunes, 78, já é avó, mas não esquece os tempos em que era filha e neta. “A minha mãe era uma boa cliente com sete filhos e, uma vez, no Natal, até trouxeram um triciclo com as compras para o meu irmão mais pequenino."
Agora, mesmo sem a mãe, “o bacalhau é sempre daqui no Natal”, confessa. “As coisas mudaram e já não faço compras como antigamente, mas nesta altura venho sempre aqui comprar qualquer coisinha”. E vai passando, sempre que pode, para fazer as delícias dos mais novos da família.
Lê-se nas prateleiras: “Escolha bem, servi-lo-emos melhor! O tempo passa, as coisas boas ficam nesta casa!”. “Procuramos sempre ter aquilo que os outros não têm”, explica Ilda. Até há "chocolatinhos para todos os gostos”.
A poucos dias do Natal, há uma confiança maior neste tipo de comércio para compor a ceia. “Qualquer coisa que falte venho aqui, porque é uma casa onde se encontra de tudo", contam os irmãos Alexandre Melo, de 43 anos, e Gabriela Melo, de 46.
“O nosso avô já nos trazia cá e agora vimos cá quatro ou cinco vezes por ano, especialmente para pão de Mirandela, as alheiras de caça, a manteiga, os queijos, os chás e alguns produtos dietéticos”, enumera.
“Tomara nós termos sempre o nível de clientela que temos nestes dias de Natal”, diz o gerente da "Chinesa". Apressado, Daniel Moreira, 66 anos, acredita que o “espírito consumista talvez seja maior" nesta época. Está à vista de todos.
E atrás das tradições, vem a qualidade. “Os produtos são muito bem escolhidos”, afiança Stephanie Hawkiens, 35. Acredita que se deve pôr os olhos na cidade e no “selo de garantia” destas mercearias.
“Quando fazemos uma compra, devemos ser conscientes de para onde o nosso dinheiro está a ir e eu prefiro investir o meu numa loja local do que numa grande superfície”, sentencia.
Sem nunca esquecer o atendimento, porque, afinal, é "cinco estrelas, sempre foi”, recordam os irmãos. “É antigo e à moda do Porto."