A Associação dos Médicos Católicos Portugueses promove curso de formação em Ética Médica, cuja primeira sessão está marcada para dia 11 de maio, no Instituto São João de Deus, em Lisboa, mas já está pensada para outubro uma segunda sessão, dado o interesse que a iniciativa está a levantar.
Entre os mais de 90 inscritos, de todo o país, estão muitos estudantes de Medicina, médicos de diversas especialidades, enfermeiros e outros profissionais da saúde que, no dia a dia, se confrontam com questões éticas e deontológicas. O curso é aberto a crentes e não crentes.
O presidente da associação, Pedro Afonso, psiquiatra, reconhece que tanto os avanços científicos como, no caso de Portugal, algumas mudanças legislativas trouxeram novos desafios a quem trabalha no setor, mas é preciso lembrar que há valores éticos que “não são negociáveis e que são intemporais”.
Em entrevista à Renascença, o responsável diz mesmo que não é uma questão de “modernidade” nem de “adaptação às circunstâncias da sociedade” e que é por isso que a AMC tem tomado posição pública sobre várias matérias onde já se legislou, ou se tem tentado legislar, como é o caso da eutanásia. E espera que o curso ajude todos os profissionais, os mais novos e os mais velhos, a atualizarem-se sobre o que é essencial.
Durante os trabalhos, será lançado o livro “Reflexões sobre Ética Médica”. Coordenado pelo próprio Pedro Afonso e por Miguel Cabral, padre e oncologista, reúne artigos de 20 especialistas, portugueses e espanhóis, entre os quais Walter Osswald, Fernando Maymone Martins, João Paulo Malta, Maria João Lage, Margarida Neto, Isabel Galriça Neto, Pedro Vaz Patto, Justo Aznar e Lucía Gómez Tatay, entre outros. O livro tem a chancela da editora Princípia e vai ser apresentado pelo cardeal patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente.
O que é que levou a Associação de Médicos Católicos a organizar este curso de formação em ética médica?
Nós consideramos a ética médica como uma das missões da Associação e verificámos que existia, principalmente por parte das gerações mais jovens, um apelo no sentido de organizarmos um evento deste género. Foi isso que fizemos. Procurámos, de alguma forma, percorrer os principais temas relacionados com a ética e a deontologia médica, para podermos, até mesmo nós próprios, fazer uma atualização sobre alguns temas, com especialistas reconhecidos na área. Julgamos que é uma boa oportunidade para todos beneficiarem disto, quer as gerações dos médicos mais novos, quer os mais velhos.
Esta questão da ética e da deontologia não é suficientemente trabalhada ao nível da formação inicial dos médicos?
Não digo que não seja, mas a nossa visão é um pouco diferente. Como Associação de Médicos Católicos, temos uma visão particular relativamente a alguns aspetos de ética médica, nem sempre coincidentes com aquilo que está legalmente em vigor. Ou seja, há uma prática médica que é autorizada, como por exemplo a prática do aborto, com a qual nós não concordamos, e como tal defendemos um ponto de vista coincidente com a doutrina da Igreja.
É muito importante um médico que é católico ter a noção de que é perfeitamente conciliável a sua fé com a boa prática da medicina, e não é pelo facto de ter fé que vai deixar de aplicar os métodos mais avançados e de exercer uma medicina diferenciada e moderna. É isso que nós queremos transmitir, que ambas as realidades são conciliáveis, não são incompatíveis. São essas mais valias que procuramos acrescentar nesta formação.
A Associação tem tomado posição pública relativamente a vários temas. A discussão - e em alguns casos a aprovação - de novas leis em áreas consideradas fraturantes, trouxe novos desafios éticos aos médicos e aos outros profissionais?
Trouxe, e até a um ritmo demasiado rápido e alucinante. Nos últimos dois anos tivemos uma série de iniciativas legislativas por parte da Assembleia da República, mais concretamente com a tentativa, que felizmente não foi aprovada, de legalização da eutanásia, e a mudança de identidade de género no registo civil. Tivemos também uma tentativa, que felizmente também não passou, de aprovação da legalização da canábis. Enfim, houve um conjunto de iniciativas por parte da Assembleia da República que tem, de facto, grande interferência na prática médica e que é um assunto que a nós particularmente, Associação de Médicos Católicos, nos importa, e por esse motivo tivemos uma intervenção pública sobre essas matérias.
É preciso lembrar aos profissionais de saúde - e será esse um dos objetivos deste curso - que há valores éticos que não são negociáveis?
Não são negociáveis e que são intemporais. Não é uma questão de modernidade nem de atualizarmos as nossas perspetivas em relação a circunstâncias da sociedade. Não quer dizer que não tenhamos isso também em consideração, até porque há desafios que hoje se colocam que não existiam há uns anos atrás, que têm a ver com as novas tecnologias, com a evolução da própria ciência e da medicina, mas há aspetos que são, de facto, inegociáveis e intemporais, como a defesa da vida humana desde a conceção até à morte natural. E obviamente que não podemos ceder relativamente a isso, ou melhor, devemos defender aquilo em que acreditamos, que esses aspetos devem ser preservados na prática médica.
Que temas a abordar ao longo do curso que destaca?
Procurámos pôr títulos apelativos, para as pessoas se questionarem, por exemplo, sobre como "uma gravidez não planeada" às vezes pode acontecer e levar a que mulher, e o pai da criança, possam ponderar eventualmente uma interrupção, um aborto. Queremos ajudar a fazer essa reflexão, em que, independentemente das circunstâncias, a vida humana deve ser sempre respeitada e preservada. Esse é um dos temas. Vamos falar também sobre outro aspeto muito importante e atual, que é a relação médico-doente, e os desafios que são feitos hoje em dia com as novas tecnologias e o excesso da parte técnica da medicina, que de alguma forma também desumaniza a relação médico-doente.
No painel "O doente que pede ajuda para morrer" vamos falar da questão da eutanásia e da necessidade de desenvolver no nosso país os cuidados paliativos e o apoio ao fim de vida, para que a morte seja digna, de facto, e haja esse tipo de acompanhamento. Porque ainda falta muita coisa para fazer no nosso país. Já foi dito pelos partidos políticos que na próxima legislatura iam tentar novamente fazer passar a lei da Eutanásia, nós temos uma perspetiva diferente e, como tal, vamos defendê-la.
Depois, há outros aspetos, como por exemplo os diagnósticos e as intervenções terapêuticas pré-natais, e teremos um ponto alto com a apresentação do livro "Reflexões sobre ética médica", que é, precisamente, uma súmula destes tópicos.
É um livro coordenado por si, em que participam vários autores, especialistas em várias áreas...
São 20, o que ajuda um bocadinho a consolidar estes temas e serve também como argumentário para todos aqueles que queiram aprofundar a conciliação entre a doutrina da Igreja e o exercício da medicina. Também recorremos a colegas de Espanha, da Universidade de Valência e da Universidade de Navarra, com temas muito atuais, ligados à reprodução artificial, aspetos biomédicos e éticos, mas a maior parte dos autores deste livro são portugueses de reconhecido mérito científico, e que de alguma forma procuraram dar o seu testemunho. O livro é bastante abrangente, e acho que percorre os principais temas atuais da ética médica.
O curso, é aberto a profissionais de várias áreas da saúde?
Sim. Procurámos que seja apelativo, para termos na plateia não só médicos e estudantes de medicina, mas também psicólogos, terapeutas ocupacionais, assistentes sociais, enfermeiros, todos aqueles que, de alguma forma, estão ligados à área da saúde ou que querem aprofundar estes temas e refletir connosco neste curso. Está previsto um momento de alguma interatividade entre os palestrantes.
Para dúvidas que queiram colocar?
Sim, porque há aspetos, muitas vezes práticos, da vida das pessoas, questões que se vão colocar, e vamos tentar obter algumas respostas.
Já receberam muitas inscrições? Tem havido interesse por esta iniciativa?
Tem havido interesse, e já recebemos dezenas de inscrições. O curso vai decorrer no Instituto São João de Deus, e temos duas salas, uma maior preparada, se tivermos mais inscrições de última hora. Mas, temos tido muitas inscrições, curiosamente até de muitos alunos de medicina, ávidos por ter formação nesta área, precisamente para tentar conciliar a sua formação médica com a sua fé, e é esta dimensão que vamos procurar acrescentar neste curso.
O curso vai ter continuação?
Haverá uma segunda sessão em outubro, com outros temas. Vamos abordar, por exemplo, a gestão das unidades de saúde com ética e compaixão, um conceito interessante que ajuda um bocadinho a refletir, para nos desviarmos desta perspetiva economicista que às vezes tem a saúde, na tentativa de redução dos custos, que muitas vezes acaba por comprometer a relação médico-doente e a boa qualidade dos cuidados prestados. Vamos refletir, também, sobre a possibilidade de objeção de consciência, da lei permitir manter e defender a objeção de consciência dos médicos. Há alguns países, como o Canadá, por exemplo, em que isso já está a ser questionado. E vamos abordar outras áreas, como a temática da ideologia de género.
O segundo curso ainda não está fechado em termos de temática, estamos abertos a propostas, de forma a enriquecer esta formação que procuremos que dê resposta à maior parte das dúvidas de crentes e não crentes.