O presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP), Manuel Ramos Soares, defende que "o Ministério Público deve atuar rapidamente" no caso dos abuso sexual de menores cometidos no âmbito da Igreja.
"É importante para a prevenção e proteção das vitimas", argumenta o juiz, em declarações à Renascença, apontando também o perigo de o Ministério Público ficar "colado à mesma ideia que se está a colar à Igreja, de que estas entidades são conservadoras e acham que isto não tem grande importância, preferindo que as coisas se esqueçam".
Na antevisão do XII Congresso de Juízes, que decorre entre esta quinta-feira e sábado, no Funchal, subordinado ao tema “Democracia, Direitos, Desenvolvimento”, Manuel Ramos Soares, defende que, nos últimos anos, "mudou a cultura de quem trabalha na justiça".
"Antes, as pessoas achavam normal haver corrupção e criminalidade económica e, hoje, não há o mesmo grau de complacência", sustenta.
O presidente da ASJP critica o Conselho Superior da Magistratura (CSM) por não ter critérios apertados na concessão de licenças não judiciais, gerando desconfiança no sistema de Justiça. Noutro plano, Manuel Ramos Soares aponta também ao poder político: "Há intervenções legislativas que não são mal-intencionadas, mas acabam por ser desastradas."
Estamos em 2023 e o Governo continua sem aprovar a nova lei de política criminal que define as prioridades de ação da investigação. Isto gera algum problema no terreno?
Não sei, porque ainda não foi aprovada a lei, mas não interfere no bom ou mau funcionamento da investigação criminal.
Hoje, temos muitas investigações sobre pessoas que se julgavam protegidas e sobre matérias com relevância política e financeira do país. Não é por falta dessa lei que se deixa de investigar situações que envolvem gente que, há uns anos, se achava serem as mais importantes do país e hoje estão a contas com a Justiça.
O que mudou para que isso esteja a acontecer?
Acho que três coisas: mais meios, capacidade e recursos.
Se compararmos com o cenário de há 20 ou 30 anos, o sistema de investigação criminal tem mais recursos e mudou a exigência. Antes, as pessoas achavam normal haver corrupção e criminalidade económica e, hoje, não há o mesmo grau de complacência. Mudou a cultura de quem trabalha na justiça, percebeu-se que não é possível tratar todos os casos da mesma maneira, negligenciando casos que iam ficando para trás. Há também maior pressão junto das instituições para atuarem.
Somando estes fatores todos, temos hoje uma situação melhor para a sociedade e para a moral coletiva do que tínhamos há anos.
A lei dos metadados tem comprometido decisões e investigações. Fica preocupado? O que espera que possa ser ajustado?
Fico preocupadíssimo. Há intervenções legislativas que não são mal-intencionadas, mas acabam por ser desastradas porque quem faz as leis tem um grau de desconfiança em relação a quem está nos tribunais. Não faz perguntas a quem sabe e, neste caso, houve uma declaração de inconstitucionalidade e temos de atuar.
Não podemos ver pessoas condenadas por crimes sérios a serem libertadas, investigações de criminalidade séria que morrem só porque a lei é inconstitucional e nós não a corrigimos, criando mecanismos que permitam investigar. Há muita criminalidade que sem as policias terem acesso aos metadados de comunicações eletrónicas e telefónicas, não se consegue investigar.
Há outro problema resultante da inércia política: o da regulação da distribuição dos processos. O parlamento aprovou uma lei que espera há um ano para ser regulamentada e temos advogados que inventam mil situações de afastamento de juízes. O efeito prático disso é empatar até à prescrição e, quando a lei se põe a jeito, as situações vão-se repetindo. É preciso intervenção legislativa urgente para acabar com isto.
Esquecimento não é. A ministra, na abertura do ano judicial, disse que estava em preparação, mas cada dia que passa sem resolução é mais um dia que alguns arguidos têm para encher os tribunais com falsos incidentes sem objetivo eticamente defensável.
O que preocupa mais os juízes a nível processual?
No plano da eficiência do sistema, há problemas nos tribunais administrativos e fiscais, temos chamado a atenção para isso. Há dificuldades nos tribunais do comércio, há processos de insolvência e recuperação de empresas que demoram e, depois, na criminalidade financeira, os processos andam rápido até às manobras dilatórias.
Faz falta um instrumento na lei do processo que permita aos juízes, em cada processo, verificar se o uso dos direitos não está a ser feito de acordo com as finalidades certas, mas apenas de forma abusiva para atrasar o processo e criar dificuldades. O juiz precisa de um instrumento para acabar com isto. A sugestão é o processo seguir até ao fim e, aí, os incidentes corriam num processo à parte, resolvendo-se apenas no final. Assim, acredito que, em 90% dos casos, os incidentes não teriam tido qualquer utilidade. É uma sugestão para todos os processos crime, mas não só. É preciso garantir que se permita que o Direito seja exercido, mas não seja abusado.
Relativamente aos abusos na Igreja, a Justiça deve dar prioridade aos casos denunciados e apresentados à PGR pela Comissão Independente?
Considero que os processos que vão para investigação têm de ter prioridade, no sentido de se ver quem pode ser investigado, acusado, condenado ou absolvido.
As investigações não são fáceis. Muitas vezes, os casos têm muitos anos. Quem se queixou pode não querer depor e sujeitar-se a uma revitimização, pode haver padres abusadores referenciados que não sejam acusados porque não há provas, basta que a vítima não queira falar para os abusadores passarem impunes. Mas, para quem cometeu abusos e contra os quais existam provas, o Ministério Público (MP) deve atuar rapidamente. Não apenas porque é importante para a prevenção e proteção das vitimas, mas, sobretudo, antes que a prova se desvaneça mais ou que os crimes prescrevam. Precisamente para o MP não ficar colado à mesma ideia que se está a colar à Igreja, de que estas entidades são conservadoras e acham que isto não tem grande importância e preferem que as coisas se esqueçam, escondendo o problema em vez de o olhar de frente.
Quanto ao funcionamento da Igreja, estamos a ver o que acontece, normalmente, em instituições conservadoras, que acham que conseguem parar o vento com as mãos, convencidas de que o vento pára. Esta forma de atuar não tem sentido. Têm de atuar de outra maneira e a verdade é que estamos a ver bispos a atuar de forma diferente. As estruturas nacionais têm de perceber que não é um problema que possa ser varrido para debaixo do tapete.
O Conselho Superior da Magistratura (CSM) aprovou alterações na relação juiz/cargo político. Como vê a proposta?
Não conheço em concreto a proposta. Deverá chegar ao parlamento, a quem cabe aprovar.
Tenho dito que é preciso olhar para o assunto das portas giratórias como um problema de confiança no sistema de Justiça e é preciso limitar. Acho bem que o CSM, finalmente, acorde para esta realidade, mas não precisa de lei para nada. Temos dito ao CSM para ser mais criterioso quando concede autorizações. Todas as pessoas em comissões de serviço não judiciais foram autorizadas pelo próprio CSM, que não usa a norma que diz que "só autoriza se achar que o deve fazer" e, depois, vai pedir ao Parlamento para aprovar uma lei.
É preciso limitar esta situação que gera dificuldades de confiança, situações de pessoas que hoje estão na política, depois vão para o futebol, voltam aos tribunais e, depois, saem de novo. Isso é mau para a confiança no sistema.
Como está a regeneração da classe?
O número de juízes que sai do sistema é, sensivelmente, equivalente ao que entra. A renovação dos quadros apresenta alguma estabilidade.
Estou preocupado com o envelhecimento das pessoas que chegam ao Supremo Tribunal de Justiça (STJ), onde há cada vez mais pessoas envelhecidas, com 62/63 anos e estão lá um ano ou dois e, depois, saem. Há um excesso de rotatividade. As pessoas que chegam a este tribunal na fase final da carreira não têm a mesma energia de trabalho e isso é um problema para o sistema. Precisamos de saber que STJ queremos, onde chegam juízes em fim de carreira e, de dois em dois anos, o STJ muda por completo.
Porquê este tema do Congresso “Democracia, Direitos, Desenvolvimento”?
Há três funções importantes da justiça:
1 - Ser um fator de Democracia nas sociedades. Hoje, o que vemos pelo mundo e na Europa é uma crise dos sistemas democráticos que começa, normalmente, por ataques à independência do poder judicial e mecanismos de domínio da investigação criminal e tribunais;
2- Direitos, porque há uma crise de direitos humanos também. Não só pela guerra, mas porque há uma nova geração de direitos, sociais e culturais, que a Justiça ainda não assimilou totalmente como deve tratar;
3- Desenvolvimento, porque, de acordo com a agenda das Nações Unidas, a Justiça tem de se assumir como um fator de desenvolvimento de um país.
Queremos discutir isto, os congressos são momentos de diálogo com a sociedade e um dos aspetos mais importantes será apresentar casos práticos, experiências de vida de pessoas que passaram momentos difíceis. Outro aspeto relevante é a divulgação de um trabalho de uma equipa multidisciplinar, que é a agenda da Justiça, um conjunto de propostas para melhorar a Justiça no plano da qualidade e eficiência.