“Têm subestimado Kim Jong-un. É fácil no Ocidente rir do cabelo, tem um ar ridículo"
29-05-2019 - 14:51
 • Sandra Afonso

A Renascença falou com Paul French, um dos poucos investigadores com autorização para entrar no país mais fechado do mundo: a Coreia do Norte. O autor do livro “Coreia do Norte – Estado de Paranoia” defende que uma terceira cimeira com os EUA será inevitável e a reunificação entre as Coreias nunca será possível com a dinastia Kim no poder.

O corte de cabelo "ridículo" e os cerca de 30 anos do líder da Coreia do Norte fizeram com que passasse despercebido por muitos radares internacionais. Mas segundo Paul French, um dos poucos investigadores com autorização para entrar no país, Kim já se afirmou como um verdadeiro ditador do século XXI.

Em entrevista à Renascença, French defende que Kim Jong-un já conquistou os jovens, a esperança de uma eventual resistência. O país vive mergulhado em pobreza e dificuldade e as armas nucleares são uma “moeda de troca”. Uma terceira cimeira com os EUA será inevitável e a guerra comercial entre a China e os Estados Unidos está para durar. A reunificação entre as Coreias nunca será possível com a dinastia Kim no poder, sublinha.

O lançamento de “Estado de Paranoia” decorre esta sexta-feira, às 18h00, na Feira do Livro de Lisboa.

Há motivos para países como o Japão e a China demonstrarem paranoia para com a Coreia do Norte?

Sim. Tanto o Japão como a China estão bastante preocupados com a Coreia do Norte. Historicamente, como vimos agora no encontro entre Donald Trump e Shinzo Abe (primeiro-ministro japonês), uma das maiores preocupações do Japão continua a ser o rapto de japoneses para a Coreia do Norte. É uma daquelas histórias que alimenta a paranoia, de que a Coreia do Norte envia mini-submarinos para a costa japonesa, para levarem raparigas jovens das praias para ensinarem japonês e o sotaque japonês aos espiões norte-coreanos. É para lá de James Bond!


Os testes com os mísseis são uma provocação?

No último ano foi assustador. Durante os testes com os mísseis alguns aproximaram-se do Japão. Só é preciso um erro. Não conhecemos a precisão dos mísseis, se um deles atingisse o Japão seria um desastre. Pelo mesmo motivo, os chineses ficaram muito preocupados no ano passado. Estes testes estão a trazer mais navios de guerra norte-americanos para o Pacífico, mais soldados americanos para a Coreia do Sul, eles estão cientes de que as coisas podem correr mal, os mísseis podem atingir Guam.

Penso que às vezes a Europa tem dificuldade em entender como foi assustador, há um ano, há 18 meses. No plano nuclear, foi o momento mais sensível que vivemos, desde a crise dos mísseis de Cuba (1962). Isso não foi verdadeiramente percebido na Europa, como foi intenso e como estivemos perto de uma guerra. Uma guerra por acidente.

O arsenal da Coreia do Norte sempre levantou dúvidas. É uma ameaça real?

Não sei se o descreveria como uma ameaça. É real. Eles produzem armas nucleares, podem entregar essas armas e, certamente, é uma potencial ameaça direta à Coreia do Sul e ao Japão e, possivelmente, até ao Havai. Agora, outra coisa é saber se alguma vez as vão utilizar. Penso que as armas nucleares são uma moeda de troca, aquilo que o Norte realmente precisa é da sobrevivência do regime, para isso será necessário fazer chegar comida ao país e o levantamento das sanções das Nações Unidas.

A situação neste momento com a comida, óleo, eletricidade e por aí fora é realmente má e a única moeda de troca de Kim Jong-un, com as Nações Unidas e restantes doadores, são os mísseis.


Mas sem cedência não há negociação.

Até penso que ele estava disponível a usá-los, só não contava com Donald Trump na presidência, pensava que seria como quando o pai lidou com (Bill) Clinton, haveria uma presidência razoável, que aceitaria conselhos do Departamento de Estado e os norte-coreanos iam realmente trabalhar para entender o Departamento de Estado, o embaixador e a Casa Branca.

Em vez disso, estão a lidar com alguém que não segue as regras, não investiga, não se prepara, pensa que um acordo de mísseis com a Coreia do Norte é o mesmo que um acordo de propriedades na 5ª Avenida. É claro que Singapura falhou e Hanói também falhou, embora pareça que Kim Jong-un ganhou, ele até tem uma foto com o presidente americano. Há dez anos era impensável, uma foto entre o ditador norte coreano e o presidente norte americano. E aconteceu duas vezes.

Acredita que haverá uma terceira cimeira?

Sim. Donald Trump é inteligente, digo isto com cuidado... Ontem, quando se repetiram os testes com mísseis nucleares, em violação com os regulamentos das Nações Unidas, Trump foi informado pelos conselheiros, mas, claro, negou. Alguns vêm isto como uma falta de atenção mas, se ele dissesse que era uma violação, voltaríamos a uma situação de conflito entre a Coreia do Norte e os EUA e a navios de guerra no Pacífico, se disser que não há violação deixa a porta aberta a uma terceira cimeira.

O que é que eles pretendem?

Trump está interessado numa terceira cimeira porque ainda não alcançou realmente nada nas primeiras duas e precisa de uma vitória na política externa. Penso que Kim Jong-un quer um terceiro encontro porque interessa-lhe algum tipo de acordo sobre as armas nucleares, a suspensão ou algum tipo de inspeção que levante as sanções das Nações Unidas, em troca de um gesto da Coreia do Norte. Por isso, acredito que é provável a realização de uma terceira cimeira. Normalmente, teríamos um “roadmap”, um acordo estruturado, com medidas. Mas com Donald Trump é difícil antecipar o que teremos.

A guerra comercial entre os EUA e a China, deverá arrastar-se?

Sim e isso afeta também a Coreia do Norte. Há um ano, estava eu na China, eles envolveram-se em sanções, estavam muito preocupados com os testes nucleares, queriam realmente alcançar um acordo, em que as sanções fossem levantadas e que as coisas começassem a funcionar de novo na Coreia do Norte, sem testes com mísseis. Este ano, um mês depois de ter estado na China, é completamente diferente. Neste momento, os chineses estão muito menos preocupados com a Coreia do Norte e se o país for um problema para Donald Trump, tanto melhor! Eles estão em plena guerra comercial, quem for um problema para Donald Trump, Vladimir Putin, a União Europeia, Japão, qualquer coisa que seja um problema para a América são boas notícias para a China.

Nas visitas à Coreia do Norte, quem ou o que é que o marcou mais?

Impressiona-me que o país exista! Este é um país que no final da Guerra da Coreia, em 1955, estava completamente destruído, e foi deixado com pouquíssimo apoio. Eles recebiam óleo e alguma ajuda da Rússia, mas nunca era muito. Nunca tiveram uma relação muito boa com a China, claro, nem a sul e do outro lado do mar, com os países próximos dos americanos, Coreia do Sul e Japão. Arranjaram forma de construir este extraordinário país, que no final dos anos 80, quando a União Soviética colapsou, passou por uma fome terrível, na década seguinte, que terá matado 10% da população. Ainda assim, a dinastia Kim conseguiu manter-se no poder e nunca enfrentou uma oposição de verdade por parte do povo.

Sei que os norte-coreanos seguem de perto o que aconteceu com a queda da União Soviética, no Iraque com Saddam Hussein e, mais recentemente, lembro-me de os ver extremamente preocupados ao ver o que aconteceu com Kadhafi, na Líbia. Esta ideia de que o líder pode ser muito popular, independente, confiante, desafiar o ocidente e acabar filmado a ser arrastado do carro e morto à beira da estrada assustou-os bastante.

Mas o povo está realmente informado sobre o que acontece fora do país e reage a essa informação?

Em comparação com os países onde vivemos, o conhecimento que eles têm do mundo é muito limitado. Muito poucas pessoas saem do país, eles não vêm realmente nada nas notícias deles. Isso está a mudar, à medida que as pessoas vão tendo acesso a portáteis usados da China e cartões de memória da Coreia do Sul. As pessoas estão conscientes das diferenças entre as Coreias, que é enorme agora, a Coreia do Sul está muito forte em termos de televisão, filmes, revistas, etc. Eles têm visto isso, cada vez mais.

Do outro lado, está a ideia de que o mundo está contra nós, os sul-coreanos podem ter mais, mas para isso têm de ser escravos dos americanos. Apesar de ser mais difícil de justificar agora, continua a existir um patriotismo, um nacionalismo, esta ideia de que pode haver guerra a qualquer momento misturada com a consciência crescente de que viver na Coreia do Sul, China e Japão, os países que conhecem melhor, é claramente melhor que no próprio país.

Acha que teve liberdade para explorar Coreia do Norte? Ou sentiu alguma tentativa de manipulação da informação?

Não, não tive liberdade para explorar o país e eles manipularam toda a informação. Quem disser que sabe o que se passa na Coreia do Norte ou que ouviu de alguém o que se passa no país está a mentir. Vemos o que eles querem e, mesmo em viagens de trabalho, em visitas a fábricas e quintas, só vemos o que eles deixam, só conhecemos quem eles autorizam e só ouvimos o que eles querem.

Não vamos ter encontros pessoais, seja com oficiais, seja com pessoas comuns, esse tipo de relacionamento é impossível, e eu tentei. Ir dar uma simples corrida, não nos deixam.

Muito raramente, se alguma vez, permitem ficarmos a sós com um norte-coreano. Se tivermos um motorista, alguém acompanha o motorista. Este é o "estado de paranoia", porque o motorista não é suposto falar connosco, mas depois vem alguém para garantir que ele não fala e o próprio motorista não sabe se tem de vigiar quem o acompanha ou o contrário.

Isto repete-se na sociedade. No trabalho, na escola, na rua. Será que a minha vizinha é politicamente de confiança? Nunca sabemos quem espia quem, quem tem poder sobre quem e, claro, isto mantém todos em sobressalto e preocupados, ninguém admite que o governo pode não ser o melhor. Esta habilidade de manter todos em paranoia com tudo e todos, amigos e família, é como se trava qualquer tipo de rebelião ou revolução.


Na sua opinião, o que quer realmente o povo? A reunificação das Coreias?

Acho que ninguém pensa na reunificação dessa forma. Obviamente que não haverá reunificação sob a dinastia de Kim Jong-un, nenhum sul-coreano quer isso. Quando falamos agora em reunificação, estamos a falar de uma mudança de liderança a norte, que provavelmente não seria uma revolução para uma democracia ocidental, que sabemos seria desastrosa em muitos sítios. Provavelmente, o que aconteceria seria o afastamento da família Kim e a sua substituição por um ou vários generais, com o apoio público ou privado de Pequim.

Aos nossos olhos iria continuar a ser uma ditadura, mas talvez começasse a fazer reformas e a entrar em diálogo com a China e a Coreia do Sul e, talvez, fosse mais além, chegasse às Nações Unidas, Japão, América, União Europeia, para que todos se possam envolver e subir a fasquia.

Há 15 ou 20 anos, todos íamos às conferências para analisarmos o caso da Alemanha, agora já ninguém presta atenção porque as duas coreias distanciaram-se bastante. A Coreia do Norte afundou-se e a Coreia do Sul é um portento tecnológico. Por isso dizemos que são dois países e a reunificação está a várias décadas de tentativas de mudar a Coreia do Norte.

Se pensarmos na abertura das fronteiras, a migração será um problema?

Essa é uma das principais preocupações da China. Os chineses não são conhecidos como acolhedores de refugiados e essa é a fronteira que eles iriam atravessar. Quando olhamos para a Coreia do Norte, um país com fome e onde a comida escasseia, aumenta a preocupação na China com os refugiados, e encoraja Kim Jong-un a ir a uma nova ronda de negociações para conseguir a entrada de alimentos no país. Por outro lado, a alternativa para a China será movimentar tropas para a fronteira, para impedir que as pessoas atravessem.

Claro que é muito fácil sair fisicamente da Coreia do Norte, quase que basta atravessar a pé, com a maré baixa, sem que os guardas vejam e com alguns subornos. O problema é que a Coreia do Norte pratica o castigo coletivo, que pode recair sobre os pais, marido, tios, primos, vizinhos, colegas de trabalho, qualquer um que podia conhecer as intenções de quem abandone o país. Isto aumenta o peso da culpa e faz com que seja difícil alguém decidir sair. Normalmente só os mais novos partem, ainda não se prenderam a ninguém, só têm os pais, já idosos, que dão permissão. É por isso que não assistimos à fuga de milhares e milhares de pessoas.

O que podemos esperar de Kim Jong-un?

Todos têm subestimado Kim Jong-un. Pensámos que era novo demais, é fácil no Ocidente rirmo-nos do corte de cabelo, tem por vezes um ar ridículo. Mas devemos lembrarmo-nos que ele tomou conta do cargo, já mostrou um lado duro, terá sido responsável pela morte de 75 pessoas, incluindo o tio, cumpriu o armamento nuclear, trouxe o presidente norte-americano para a mesa das negociações em Singapura e Hanói e tirou a famosa foto e, isto é difícil de entender fora do país, começou a relacionar-se com os jovens.

Os jovens sempre se sentiram à margem do sistema e podiam ser uma fonte de resistência ou, simplesmente, sair do país. Mas com ele, quer seja através de Dennis Rodman no basquetebol, as idas a concertos Pop, deslocações a escolas, ou o facto de ele próprio ser jovem, ter uma mulher jovem e um filho pequeno... É quase como se fosse visto como o Harry e a Megan, como a família Real, quase penso que tem andado a estudar isto. Para um ditador, em 2019, ele está numa posição muito forte. Ele está tão bem como consegue.