O escritor Salman Rushdie alertou, este domingo, que a liberdade de expressão está em risco e apelou para a sua defesa incondicional ao receber um prémio alemão em reconhecimento do seu trabalho literário e determinação face ao perigo constante.
O autor anglo-indiano condenou a época atual como tempos em que a liberdade de expressão está sob ataque por todos os lados por vozes autoritárias e populistas.
Rushdie fez os seus comentários durante uma cerimónia na Igreja de São Paulo, em Frankfurt, onde foi homenageado com o Prémio da Paz do Comércio Livreiro Alemão por continuar a escrever, apesar de suportar décadas de ameaças e violência.
O prémio alemão, dotado de 25.000 euros, é atribuído desde 1950.
O júri disse no início deste ano que iria homenagear Rushdie "pela sua determinação, pela sua atitude positiva perante a vida e pelo facto de enriquecer o mundo com seu prazer em narrar".
Ao receber o prémio, o escritor apelou hoje para a defesa da liberdade de expressão e à preservação da paz, um valor que, face aos atuais conflitos no Médio Oriente e na Ucrânia, parece mais uma "fantasia".
"A paz parece-me neste momento uma fantasia criada pelo fumo de um cachimbo de ópio", disse o autor, que recordou no seu discurso que, enquanto os presentes estavam hoje "reunidos para falar de paz" na igreja de são Paulo de Frankfurt, "não muito longe está em curso uma guerra [Ucrânia] atribuível "à tirania de um único homem e à sua sede de poder e de conquista".
Os combatentes nem sequer conseguem chegar a acordo sobre o significado da palavra paz, observou.
"Para a Ucrânia, a paz é mais do que o fim das hostilidades. A paz deve ser também a restituição de todos os territórios ocupados e a garantia da sua soberania", enquanto, para a Rússia, significa "a rendição da Ucrânia e o reconhecimento de que os seus territórios perdidos continuarão perdidos", afirmou.
Trata-se da "mesma palavra e dois significados incompatíveis", acrescentou, lamentando que, no Médio Oriente, "uma paz para Israel e os palestinianos pareça estar ainda mais distante".
"A paz é difícil de criar e difícil de encontrar e ainda assim ansiamos por ela, não apenas a grande paz no final de uma guerra, mas também a pequena paz nas nossas vidas privadas, uma vida em paz connosco próprios e os nossos pequenos mundos", observou.
Sobre o prémio hoje recebido, Rushdie disse gostar da ideia de pensar que "a paz em si é o prémio", atribuído por um júri de "sábios benfeitores" com capacidades "mágicas" e "fantásticas" pelo período de um ano.
"Seria uma recompensa que receberia com a maior alegria. Estou até a pensar escrever uma história sobre isso: "O homem que recebeu a paz como recompensa"", declarou.
Rushdie apelou também para a defesa da liberdade, e sobretudo da liberdade de expressão, "sem a qual o mundo dos livros não existiria", num momento em que é atacado por todos os lados por "reacionários, autoritários, populistas, demagogos", tanto de esquerda como de direita.
Em agosto de 2022, o escritor foi esfaqueado repetidamente enquanto estava no palco de um festival literário no estado de Nova Iorque, nos Estados Unidos e vai publicar no próximo ano um livro de memórias sobre o ataque que o deixou cego do olho direito e com a mão esquerda afetada.
"Knife: Meditations After an Attempted Murder (Faca: Meditações após uma tentativa de assassínio)" será lançado em 16 de abril, numa obra que o autor definiu como uma forma de "responder à violência com arte".
"Este foi um livro que tive de escrever, foi uma forma de assumir o controlo do que aconteceu e de responder à violência com arte", afirmou Salman Rushdie, citado pelo comunicado da editora, divulgado este mês em Nova Iorque.
O ataque ocorreu mais de 30 anos depois de Rushdie ter sido alvo de uma "fatwa" (sentença de morte), decretada pelo antigo líder religioso iraniano ayatollah Khomeini, em 1989, na sequência da publicação do seu quarto romance, "Os Versículos Satânicos", uma ficção inspirada na vida do profeta Maomé que lhe valeu o Prémio Whitbread e um lugar entre os finalistas do Prémio Booker desse ano.
Rushdie viveu a década seguinte sob proteção, escondido, experiência que também levou para o livro de memórias "Joseph Anton", de 2012.