O grupo VITA já começou a receber pedidos de ajuda de vítimas de abusos sexuais no contexto da Igreja, apesar de só começar na segunda-feira a receber chamadas pela linha telefónica de apoio, avança a coordenadora Rute Agulhas.
Em entrevista à agência Lusa na véspera da ativação da linha telefónica (disponível através do número 915090000, de segunda a sexta-feira, entre as 9h00 e as 18h00), a psicóloga escolhida pela Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) para concretizar o acompanhamento das vítimas de abusos sexuais identificadas pela Comissão Independente (CI) assume não ter “nenhuma expectativa formada” quanto aos números das pessoas que vão recorrer ao grupo VITA.
“Já estamos a receber pedidos de ajuda através do e-mail geral@grupovita.pt e estamos a tentar dar resposta a essas situações. Inclusive, temos outros atendimentos marcados. Significa que há algumas pessoas para quem está a ser difícil esperar pelo dia 22, portanto, estão a procurar-nos mais cedo e, naturalmente, nós respondemos desde logo a essas situações. Se vamos receber muitos ou poucos telefonemas? Não sei”, afirmou.
Quase um mês após a apresentação do grupo de acompanhamento, no dia 26 de abril, Rute Agulhas revelou que houve entretanto uma reunião com os anteriores membros da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica, a quem pediram ajuda para chegar ao contacto com as vítimas que denunciaram abusos e que deram origem a 512 testemunhos válidos de casos ocorridos entre 1950 e 2022 em contexto eclesial.
“Pedimos à CI que contactasse as pessoas que os contactaram e que tentassem ver junto dessas mesmas pessoas se estão disponíveis para ser ajudadas pelo VITA e em que medida”, referiu a psicóloga, garantindo que os “canais de comunicação estão totalmente abertos” para as vítimas: “Estamos neste momento a aguardar, não sei se estão à espera do dia 22 de maio para nos contactarem de uma forma mais direta ou se vamos ser contactados via CI”.
Acentuando as diferenças entre a CI - focada no estudo do fenómeno dos abusos sexuais na Igreja Católica Portuguesa - e o Grupo VITA, dedicado ao acompanhamento psicológico de vítimas, a coordenadora realçou também o trabalho de prevenção e tratamento que vai ser feito junto de pessoas que cometeram abusos ou que sentem esse impulso.
“A linha telefónica é para quem quer que nos deseje contactar, sejam vítimas, sejam pessoas que cometeram crime ou que podem estar em risco de cometer, sejam outras pessoas, por exemplo, uma mãe, um pai, um professor, alguém que tenha uma suspeita ou que esteja preocupado com uma situação em concreto. A linha está aberta a todas essas situações”, disse.
Segundo Rute Agulhas, a assistência será diferenciada entre vítimas e abusadores. Para as primeiras estão disponíveis a maioria dos membros do grupo VITA; para os últimos, o trabalho será essencialmente desenvolvido por dois membros da estrutura recém-criada que são especialistas na intervenção a este nível e na prevenção: Ricardo Barroso e Márcia Mota.
“Em termos da própria bolsa de psicólogos, também vamos tentar que haja sempre essa separação, porque, efetivamente, o tema é o mesmo - a violência sexual -, mas são dinâmicas muito diferentes; trabalhar com vítimas ou trabalhar com agressores são mesmo coisas muito diferentes e, portanto, as pessoas precisam também de formações diferentes”, esclareceu.
Necessidade de compensação para vítimas
A coordenadora do Grupo VITA admite que a nova estrutura de acompanhamento das vítimas de abuso sexual em contexto eclesiástico pode vir a sinalizar à Igreja Católica portuguesa eventuais necessidades de reparação financeira.
Embora sublinhe que “são muito poucas” as vítimas que acompanhou ao longo da sua carreira “para quem o apoio financeiro faria, de facto, uma diferença muito significativa no seu processo de elaboração do trauma”, a psicóloga referiu que essa dimensão monetária também será tida em conta.
“Em cada pessoa que nos chegar vamos tentar perceber as suas necessidades. E se em algum momento percebermos que algum apoio económico poderia fazer a diferença e ser determinante para aquela pessoa, pois naturalmente essa informação será passada à diocese nesse sentido”, esclareceu, em entrevista à Lusa, a coordenadora do grupo VITA.
“Aquilo que normalmente as vítimas mais valorizam, e que é muito importante do ponto de vista da recuperação, é sentir que são acreditadas, que não são culpabilizadas nem julgadas, e que a Igreja olha para elas de uma forma positiva, de suporte e de validação da sua situação. No entanto, para algumas pessoas pode haver essa outra dimensão, à qual nós naturalmente estamos também atentos”, afirmou.
Apesar de frisar que não cabe ao Grupo VITA indicar a quantidade de dinheiro que uma vítima possa vir eventualmente a receber, Rute Agulhas sublinhou que tal será feito se se perceber “que é importante para aquela pessoa em concreto”, distinguindo a postura da Igreja entre a ideia de indemnização às vítimas e uma noção de reparação pelos abusos.
“A Igreja está a fazer uma distinção entre indemnização e reparação. E percebo que aquilo que eu disse sobre alguma necessidade de apoio económico de alguma pessoa em concreto possa ser enquadrado aqui na lógica de reparação e que essa reparação também possa envolver um apoio económico. Naturalmente, depois cabe à Igreja decidir se o dá ou não e em que moldes. A nós cabe essa sensibilização e informação depois da escuta da pessoa”, explicou.
A coordenadora do Grupo VITA defendeu que esta questão financeira não deve ser excluída do âmbito de atuação junto das vítimas, mas sim integrada na abordagem, ativando eventuais respostas de auxílio caso isso seja relevante para a pessoa.
Sobre os meios conferidos para o trabalho da nova estrutura, a psicóloga referiu “uma logística muito grande”, visível através da criação da bolsa de profissionais para ajudar as vítimas, a necessária formação especializada sobre violência sexual e deslocações, mas escusou-se a adiantar valores, “até porque nem foram devidamente avaliados” pela CEP.
Intervenção junto de abusadores é possível, mas sem "branqueamento"
O grupo VITA está preparado para intervir a nível terapêutico junto de pessoas que cometeram abusos sexuais na Igreja, mas não vai branquear crimes, quebrando a confidencialidade para reportar esses casos à justiça canónica e à justiça penal.
“Será sempre reportado, porque não podemos, nem queremos, nem vamos de forma alguma branquear estas situações. Estamos a oferecer uma hipótese de ajuda, mas isso não significa ocultar. Queremos quebrar esta cultura de encobrimento e, portanto, vamos dizer logo a quem nos procurar que não vamos manter o segredo”, afirmou a psicóloga Rute Agulhas, que lidera a nova estrutura de acompanhamento das vítimas de abusos em contexto eclesiástico.
A coordenadora do grupo VITA disse à Lusa que o reporte às estruturas da Igreja e ao Ministério Público é acompanhado da “possibilidade de ajuda”, caso exista motivação do abusador, porque “uma intervenção terapêutica não é uma desresponsabilização pelo crime cometido”.
“A responsabilização - canónica ou penal - não chega. Temos muitas pessoas que até têm uma pena efetiva de prisão, saem e reincidem, portanto, não chega a privação da liberdade. É preciso algo mais e devemos apostar numa abordagem terapêutica”, defendeu.
Questionada sobre se a assistência a abusadores pode ser mal interpretada pelas vítimas, Rute Agulhas explicou que o objetivo do grupo VITA passa por evitar que surjam novas vítimas através da diminuição da possibilidade de reincidência de abusos sexuais, um crime que em Portugal, segundo a psicóloga, apresenta taxas mais altas de reincidência.
“Trabalhar com pessoas que já cometeram crimes sexuais é proteger outras crianças e jovens. Aquilo que sempre tenho visto nestes meus 25 anos de prática nesta área é que as vítimas, muitas vezes, estão preocupadas com a probabilidade de outras crianças virem a ser vítimas”, disse.
“‘Aconteceu comigo, pelo menos que não aconteça com mais ninguém’… Esta é uma frase que ouço repetidamente”, assinalou.
Por outro lado, o trabalho de prevenção junto de pessoas que sentem impulsos para o abuso sexual de menores assenta numa análise de risco, com Rute Agulhas a apontar níveis de risco diferentes. “A maior parte das pessoas têm risco baixo ou risco médio”, afirmou a coordenadora do grupo VITA, indicando que apenas 10% destas pessoas apresenta um risco elevado.
“Não se fala em cura, fala-se em aprender a controlar estes comportamentos e a desenvolver alguns mecanismos de controlo que têm de ser monitorizados. Estes processos terapêuticos, quando dizemos que são longos e duram anos, implicam também da parte dos terapeutas e da equipa que trabalha com estas pessoas uma monitorização do nível de risco, porque o risco também pode ser flutuante”, referiu.
Designada pela Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) para liderar a estrutura de apoio às vítimas de abusos sexuais na Igreja para os próximos três anos, Rute Agulhas reiterou ainda a independência do Grupo VITA, à imagem do que ocorreu anteriormente com a Comissão Independente (CI) para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica.
“Este grupo é tão isento e autónomo como a Comissão Independente. No entanto, como temos objetivos diferentes e um deles passa por poder capacitar as estruturas que já existem no seio da Igreja (comissões diocesanas, institutos religiosos e outras entidades eclesiásticas), naturalmente que isso vai exigir do grupo VITA uma articulação [com a Igreja]”, concluiu.
Além de Rute Agulhas, o grupo executivo do VITA é constituído por Alexandra Anciães (psicóloga com experiência de avaliação e intervenção com vítimas adultas), Joana Alexandre (psicóloga, docente universitária e investigadora na prevenção primária de abusos sexuais), Jorge Neo Costa (assistente social, intervenção com crianças e jovens em perigo), Márcia Mota (psiquiatra, especialista em Sexologia Clínica e intervenção com vítimas e agressores sexuais) e Ricardo Barroso (psicólogo e especialista em intervenção com agressores sexuais).