A não recondução de Vítor Caldeira como presidente do Tribunal de Contas (TC) foi tudo menos inócua ou inocente. Se ainda fosse preciso mais um caso para provar a justeza do aviso de Jorge Coelho -- "quem se mete com o PS leva" -- aí está ele. Com o absurdo de nem os socialistas poderem escapar à punição. Mas a súbita nomeação de um novo Juiz Conselheiro para o cargo, quase no mesmo dia da exoneração, e às 10 da noite, por Marcelo Rebelo de Sousa, fez o Presidente cúmplice de uma trapalhada que lhe pode custar muito mais do que imagina. A pressa é má conselheira e há dias em que não se pode trabalhar até tão tarde.
A nomeação da quinta figura mais importante do Estado é competência do Presidente da República sob proposta do Governo. Terá Marcelo tido tempo para ponderar a escolha? Estaria na posse de todos os dados? Saberia que José Tavares, o juiz conselheiro proposto pelo Governo para novo presidente do órgão de fiscalização, embora tivesse sido diretor-geral do Tribunal de Contas durante 25 anos e por inerência chefe de gabinete do presidente, fora afastado por Vítor Caldeira exatamente no início deste ano e transferido para a segunda secção?
Mera renovação? Má relação entre ambos? E porquê justamente por altura dos desenvolvimentos conhecidos no inquérito judicial às Parcerias Público Privadas (PPP) que decorre desde 2012 e onde terão sido constituídos arguidos, já este ano, dois ministros de Sócrates (Mário Lino e Teixeira dos Santos)? Saberia que, como recorda o "Observador", o nome do novo presidente é citado como um dos juízes que ajudou o Governo a ultrapassar as reservas dos colegas, em reuniões ao sábado e de caráter sigiloso? Saberia que a PJ o descreve no inquérito como “próximo” de Sócrates e do seu secretário de Estado Paulo Campos, o principal renegociador das parcerias com mails trocados (em 2009 e 2010) com o então ex-diretor geral do TC, com a estranha instrução “destruir depois de ler”, como escreve Luís Rosa?
Saberia que precisamente nesse inquérito, que já leva mais de oito anos e nunca mais acaba, se aponta para um prejuízo do Estado de 3,5 mil milhões de euros através de clausulas extracontratuais (pretensamente “secretas”), criadas para ultrapassar a recusa do Tribunal de Contas dos contratos de renegociação das PPP? Saberia que José Tavares, nos idos de 2012, quando se inicia o processo, surge nele como o juiz que ajudou Almerindo Marques (à época presidente das Estradas de Portugal) a encontrar soluções para vencer os obstáculos na atribuição dos vistos? Nada de ilegal, presume-se, mas se mal entendido ou mal explicado, necessariamente polémico até, pelo menos, o final do inquérito. Não pela ajuda prestada, legítima e legal. Mas pelo tipo de solução adotada. Imagine-se o que seria ter de substituir José Tavares a meio do mandato.
Ponderou Marcelo o significado exato do envolvimento, mais uma vez por inerência, no Conselho de Prevenção da Corrupção, em boa hora criado junto do Tribunal de Contas como entidade independente de carácter essencialmente pedagógico, de ajuda e dinamização de planos anticorrupção nos organismos de administração pública, mas sem nenhuma competência de “investigação criminal”? Ou seja, uma entidade bem longe de atribuir por si só uma espécie de certificado de vida “dedicada” ao combate à corrupção que uma leitura apressada do currículo poderia legitimar?
Talvez o Presidente retire, como lição útil, que há dias em que não se deve trabalhar até tão tarde e que às 22h já não é hora de despacho.
Toda esta triagem fina do currículo do nomeado talvez justificasse mesmo uma audição parlamentar a confirmar o perfil e a sua adequação à função, não devendo ser reduzidas a meia dúzia de horas pelo Presidente da República, pronto para retirar as pedras do caminho de Costa, ainda que isso lhe possa causar um tropeção. Há cooperações estratégicas que ameaçam confundir-se com estratégias de cooperação. Ora, uma e outra não significam exatamente a mesma coisa.
Qual é a pressa?, diria o injustiçado António José Seguro. Qual é a pressa, sobretudo de Costa, em envolver o Chefe de Estado numa decisão sua de não-recondução de um titular de um órgão de fiscalização, em que constitucionalmente está prevista a possibilidade de recondução e que, pela primeira vez na história da democracia, não ocorrerá por evidente confronto entre o titular e o Governo? E porque se sente o Presidente obrigado a vir em socorro da decisão, recorrendo ao mesmo argumento de Costa e remetendo para o antecedente da PGR.
Que lei não escrita firmaram os dois para a não-recondução de todos os titulares de cargos judiciários? Por que raio o precedente criado com a não-recondução de Joana Marques Vidal na Procuradoria Geral da República se transformou numa espécie de princípio de aplicação “obrigatória”? Onde é que isso foi dito, ou ficou escrito, quando não se passou para os estatutos e as leis que criam os diferentes órgãos? E porque é que nunca foi anunciado ao povo, e menos ainda aos próprios, ficando os mesmos a saber as linhas com que se cose?
Que “conluio” informal resulta da cooperação Presidente/Governo que não se estende a casos tão óbvios como a vantagem de não existir portas giratórias entre o Ministério das Finanças e o Banco de Portugal, mormente para evitar casos caricatos, como os de terça-feira, em que o Governador Mário Centeno no relatório de outubro da instituição, elogia a eficácia da política do ministro das Finanças Mário Centeno, louvando-o pela correção das medidas adotadas, no início do ano, quer no que se refere ao "lay-off" simplificado, quer em relação às moratórias impostas à banca nos créditos concedidas a famílias e empresas.
Poiares Maduro, em entrevista à Renascença, foi claro em perguntar-se sobre a lógica de um homem que foi em três mandatos consecutivos presidente do Tribunal de Contas Europeu e goza de reputação internacional imaculada não poder cumprir, como presidente do Tribunal de Contas do seu país, mais de quatro anos num único mandato. Será porque ele era um “picuinhas”, um atraso de vida em matéria de execução de milhões de euros em fundos que se quer rápida, transparente, mas eficaz? Ou porque o Estado socialista é o Estado de um Governo único em que o senhor Presidente do Conselho não admite contraditório?
E que faz Marcelo a pactuar com semelhante ação, na mesma semana em que apela ao “pluralismo” e “ liberdade de pensamento”, à “ diferença”, e recusa as ditaduras, recordando a ética republicana que “repudia compadrios, clientelas, corrupções”?