O primeiro-ministro de Espanha, Pedro Sánchez, disse esta terça-feira que o Governo espanhol vai acatar a decisão do Tribunal Constitucional (TC) de parar uma votação no Senado, apesar de atentar contra "o princípio básico da soberania popular".
"Pela primeira vez" em 44 anos de democracia em Espanha, "impedem-se os representantes legítimos, democraticamente eleitos pelos espanhóis com o seu voto, de realizarem a sua função de representação dessa vontade popular", afirmou Sánchez, numa declaração a partir da sede do Governo espanhol, em Madrid.
O primeiro-ministro realçou que este é "um facto grave" e sem precedentes também no resto da Europa, e disse entender "a indignação de muitos democratas" e "a preocupação da sociedade" perante um "choque institucional tão grave e tão inédito" na história recente espanhola e europeia e a "vulnerabilização do princípio básico da soberania popular".
Sánchez deixou, contudo, "uma mensagem de serenidade" e disse que a decisão do TC será acatada pelo Governo, apesar de discordar dela, por respeito às instituições do Estado de Direito.
O que está em causa?
O Tribunal Constitucional (TC) de Espanha decidiu na segunda-feira à noite impedir o debate e votação de uma iniciativa no Senado, numa decisão inédita na democracia espanhola de ingerência na atividade parlamentar.
Abriu-se assim uma "crise institucional sem precedentes" na democracia espanhola, acusou o presidente do Senado, Ander Gil, após ser conhecida a decisão do TC, com seis votos a favor e cinco contra.
De onde surge esta decisão?
A decisão foi tomada pelos juízes do Tribunal Constitucional a pedido do Partido Popular (PP, direita, na oposição) e tem como alvo uma mudança na legislação que regula a eleição de juízes do próprio TC e do Conselho Geral do Poder Judicial.
O PP pediu, num recurso para o TC, uma medida cautelar e invocou que foram atropelados procedimentos parlamentares, por parte dos partidos no Governo (socialistas e plataforma de extrema-esquerda Unidas Podemos), que recorreram a mecanismos que permitiriam concretizar as mudanças legislativas em poucos dias e sem debate no Congresso e no Senado, as duas câmaras das Cortes espanholas.
Para o PP, os deputados e senadores foram impedidos de exercer os seus direitos constitucionais de participação política, ainda por cima estando em causa mudanças em leis fundamentais, relacionadas com o funcionamento de órgãos judiciais e que são o garante do cumprimento da própria Constituição.
PSOE e Unidas Podemos tinham decidido recorrer à figura das "emendas" e da "tramitação urgente" previstas no regulamento parlamentar para fazer a alteração legislativa que ia ser votada no Senado na próxima quinta-feira e que já tinha sido aprovada pelo Congresso na semana passada, pela maioria formada pelos dois partidos no Governo e partidos nacionalistas bascos e catalães, entre outras formações.
A forma como PSOE e Unidas Podemos queriam fazer aprovar esta mudança no funcionamento de dois órgãos tão sensíveis como o TC ou o Conselho do Poder Judicial tem sido criticada por ser "um atalho" ou "um atropelo" legislativo, que impede o debate parlamentar.
Porquê o recurso a "atalhos"?
As mudanças na eleição dos juízes do TC e do Conselho do Poder Judicial tinham como objetivo diminuir as maiorias necessárias para as escolhas de alguns dos magistrados, depois de quatro anos sem o acordo necessário entre os partidos no Governo e o PP para substituir elementos das duas instituições.
O PP recusa fazer acordos com o PSOE sob o argumento de que o Governo espanhol faz pactos e negoceia com partidos independentistas catalães e bascos, que querem "romper Espanha" e atentam contra a Constituição.
Perante a falta de acordo, não há no TC ou no Conselho do Poder Judicial, atualmente, juízes indicados na legislatura iniciada em 2019, em que governa a esquerda.
No Conselho do Poder Judicial e no TC mantém-se assim uma "maioria conservadora", conectada com o PP e a direita em geral.
O que dizem os socialistas?
O presidente do Senado, Ander Gil, e a presidente do Congresso, Meritxell Batet, ambos do partido Socialista (PSOE), já disseram que vão acatar a decisão do TC, por respeitarem as instituições do Estado de Direito, mas anunciaram que a vão contestar e sublinharam a sua gravidade.
Na declaração que fez hoje, Sánchez condenou os juízes do TC por terem decidido desta forma numa matéria que afeta a sua própria continuidade nos cargos, em alguns casos, já caducados.
O primeiro-ministro culpou o PP por esta situação, por bloquear a substituição dos juízes do TC e do Conselho do Poder Judicial, como estabelece a Constituição, há quatro anos, desde que os socialistas e a Unidas Podemos governam -- havendo, por isso, vários magistrados com mandatos caducados há anos.
O "único propósito" que o PP tem é manter nos dois órgãos "uma composição anterior mais favorável à sua orientação" e "um poder que os cidadãos não validaram nas urnas", afirmou Sánchez.
E o que acontece a seguir?
O primeiro-ministro espanhol e líder do PSOE prometeu tomar quantas medidas forem necessárias, dentro do cumprimento da Constituição, para acabar com o bloqueio na substituição de juízes e fazer assim cumprir a lei e "a vontade popular manifestada nas eleições de 2019".
O líder do PP, Alberto Nuñez Feijóo, tem agendada uma conferência de imprensa para hoje, mas na segunda-feira à noite já escreveu no Twitter que a democracia espanhola ficou "fortalecida" com a decisão do TC porque "num Estado de Direito, todos os poderes estão submetidos à lei".
Bruxelas pede respeito pelas "regras"
A Comissão Europeia apelou entretanto "a todas as autoridades" espanholas para atuarem "de acordo com as regras e procedimentos", após a decisão do Tribunal Constitucional (TC) de Espanha de parar uma votação no Senado.
"Normalmente, não comentamos decisões judiciais. Esperamos que todas as autoridades nacionais e partes atuem de acordo com as regras e procedimentos a nível nacional", afirmou o porta-voz para a Justiça da Comissão Europeia (CE), Christian Wigand, durante a conferência de imprensa diária do executivo comunitário, em Bruxelas.
O porta-voz da CE não quis comentar de forma direta a decisão do Tribunal Constitucional espanhol, que travou um processo legislativo que tinha como objetivo alterar a forma de eleição de juízes do próprio TC e do Conselho Geral do Poder Judicial, assim como o conteúdo da iniciativa.
Christian Wigand disse que Bruxelas segue "de perto" e acompanha as reformas na área da justiça no contexto do relatório anual que produz sobre o Estado de direito nos países da União Europeia.