O ministro da Defesa, Azeredo Lopes, confirma, em entrevista à Renascença, que os militares portugueses vão para o Afeganistão com blindados emprestados pelos Estados Unidos. Motivos financeiros estão na origem desta opção.
A entrevista de Azeredo Lopes acontece dias depois de ter sido conhecido o alerta dos quatro chefes militares sobre a falta de meios das Forças Armadas. Em resposta a esse memorando, o ministro diz ser necessário fazer escolhas: se o dinheiro e os meios humanos não chegam, é preciso eleger as prioridades.
O fundamental, segundo Azeredo Lopes, é que não falhem as missões vitais de segurança e dá o exemplo de Tancos como um caso a não repetir. Uma conversa antes de o ministro da Defesa partir para São Tomé e Princípe, país com o qual Portugal vai aprofundar a cooperação técnico-militar.
O que é que Portugal, em termos de cooperação técnico-militar, tem com São Tomé e Príncipe?
Tem uma forma mais evoluída que agora designamos como cooperação na área da defesa nacional. Porque é que é mais evoluída? Primeiro, porque envolve abordagens diferentes da cooperação técnico-militar clássica. Segundo, porque, como vai acontecer agora, estamos a testar soluções que nunca tinham sido tentadas – medidas de capacitação, neste caso marítima, de São Tomé, através da presença, pelo menos durante um ano, de um navio e de fuzileiros e outros marinheiros para capacitar as forças de São Tomé nessa área da jurisdição sobre o território marítimo de prevenção e, se necessário, de intervenção na área de comportamentos primeirosos.
Quais são as maiores fragilidades de São Tomé, a nível de segurança, defesa e politicamente?
São Tomé é um país muito pacífico, muito estável, um país que tem uma longa tradição democrática. É um país de onde, felizmente, não há notícias frequentes – é normalmente um bom sinal. Mas São Tomé também é um país inserido numa região problemática, muito perto do Golfo da Guiné que, infelizmente, nos últimos anos, é um fator de preocupação para a navegação mundial. Por ali circula uma parte enorme do comércio internacional por via marítima e, até por causa disso, sendo um país pequeno, com uma longuíssima história de amizade com Portugal, Portugal não podia deixar de acolher à solicitação de São Tomé.
Portugal tem todo o interesse em ser mais interventivo na segurança, nas questões ligadas à segurança marítima. Temos no meio do Atlântico os Açores, temos uma vocação atlântica e marítima de há muitos séculos.
Como é que estes meios portugueses vão apoiar as autoridades são-tomenses?
São Tomé não tem uma grande capacidade naval. Só o simples facto de estar um navio com caráter de permanência com pessoas muito qualificadas é uma vantagem para São Tomé.
É um fator dissuasor de criminalidade?
De uma criminalidade básica, que nos parece, às vezes, insignificante, que é a pesca ilegal. E a simples presença de um navio da República Portuguesa nas águas de São Tomé é um elemento de grande dissuasão para infratores, que até agora tinham praticamente garantida a impunidade.
Também há a questão das comunicações. Quarenta anos depois, foram retomadas as comunicações com São Tomé.
Não estamos a falar na lógica de coitadinho. É uma necessidade que foi identificada pelas autoridades são-tomenses e um custo que podemos assumir sem especiais encargos. Estamos [também] a falar de fardamentos, ou seja, para que as forças armadas de São Tomé possam ter fardamentos, nem que sejam uniformes. Estamos a falar verbas mais ou menos irrisórias. Aquilo que a engenharia militar faz, reparações, vedações, arranjos de estradas, coisas que têm um impacto direto na vida das pessoas…
Disse recentemente, durante a visita a Portugal do secretário-geral da NATO, que o país não pode deixar de dar este apoio.
As nossas relações históricas de séculos com esses países tornam muito difícil concebermos sequer não colaborarmos permanentemente com eles. Portugal hoje é um país produtor de segurança e defesa global. Somos um país médio, pequeno, com muito orgulho, com uma população também média, pequena, com muito orgulho, e com os constrangimentos financeiros que são bem conhecidos. Onde é que podemos fazer valer que somos diferentes e fazemos a diferença? É nestas coisas. É numa presença determinante dos nossos comandos e da nossa força aérea na República Centro-Africana. É na capacidade empática de estarmos onde quer que seja, sermos sempre bem-recebidos e de, além disso, nunca nos ter sido atribuída nenhuma infração, como, infelizmente, tem acontecido noutras missões internacionais. É nesta possibilidade de inventar soluções e de com pouco fazer muito.
Mas é preciso uma gestão realmente muito criteriosa. Quando se tem pouco tem que se gerir bem.
O dinheiro público não é para brincar. Tem que haver uma compreensão que seja fácil para o cidadão comum entre aquilo que é gasto e aquilo que representa a vantagem para o Estado português. Em 2018, com menos de 60 milhões de euros vamos participar em 20 missões internacionais. A média do empenhamento em 2017 foi de mais de 500 militares/dia, em média. Com muito pouco dinheiro, conseguimos estar em quatro continentes. Conseguimos ter um papel determinante em várias missões internacionais. Conseguimos hoje, em 2018, com muito menos dinheiro do que há 15 anos, fazer muito mais. Isto significa que há um controlo mais apertado na despesa. E há também uma capacidade permanente dos ramos de se adaptarem a um contexto que é mais exigente e onde hoje é impossível dizer "não faz mal, de onde este veio há mais". Isso não é aceitável hoje.
Os chefes militares têm que dizer se é possível fazer essas missões?
Sempre, sempre. Aliás, se há área onde essa fronteira se percebe muito bem é esta mesmo porque tem as orientações politicas. Vou-lhe dar um exemplo: o governo a que pertenço, quando iniciou funções, disse: "é tempo de regressar às Nações Unidas". Estávamos praticamente fora de missões das Nações Unidas.
Muito mais NATO e menos Nações Unidas...
O mais NATO não tem mal nenhum. O que tinha mal era a ausência da participação em missões naquela que é a organização mundial por excelência. Portanto, essa diretiva foi dada com toda a clareza às chefias militares e, em particular, ao chefe do Estado Maior General das Forças Armadas.
Dou-lhe um segundo exemplo: quando Portugal tomou a decisão de descontinuar o Kosovo foi uma decisão politica.
Que foi contestada no seio militar...
Sim, contestada, sim. Houve discordâncias, sim, é verdade. E, numa sociedade democrática, as discordâncias não têm mal nenhum. Mas o compromisso politico foi: assim que haja uma missão com forças terrestres NATO, nós cá estaremos a voltar.
E é o que acontece com o Afeganistão?
É o que acontece com o Afeganistão. Porque é que é uma força de reação rápida? Porque o senhor general CEMGFA entendeu que podia propor. Porque é que é no aeroporto? Porque é seguramente o local mais seguro do Afeganistão, embora seja uma missão exigente, e é algo em que já estamos treinados. Tudo isso é algo em que o ministro não intervém. Apenas verifica se pode.
Se os chefes militares decidissem que não teriam condições para fazer essa tal participação, o governo aceitaria?
Diziam-me isso antes e eu nem sequer mostrava disponibilidade politica para regressar a uma missão.
Portanto, as missões não se realizariam sem o acordo e sem a concordância dos chefes militares?
Não, não. Repare, isto não é um sistema democrático, ou seja, não vai a votos. O ministro não coloca a votos nenhuma missão. Os chefes militares, normalmente, sem disso fazerem qualquer alarme, dizem: "esta parece-nos difícil de executar, esta parece-nos a adequada à luz das diretrizes politicas que foram estabelecidas". A dimensão operacional não cabe ao ministro; a orientação politica cabe, exclusivamente, ao ministro em representação do Governo. Depois, a execução tem afinações que resultam do diálogo entre a dimensão operacional e a dimensão mais político-financeira.
E foi isso que foi feito no memorando. É um alerta?
Cabe aos senhores chefes militares informarem o poder politico do seguinte: estas são as missões absolutamente prioritárias e garantimo-las sempre. Que fique claro que essas missões prioritárias que envolvem segurança de pessoas, segurança coletiva, segurança de instalações, não são sequer discutíveis. Não se discutem, fazem-se. Foi isso, aliás, que procurei destacar aquando do furto de Tancos. É uma falha grave na segurança e proteção de instalações militares com material militar. Constitui uma obrigação reconstituir o mais depressa possível a segurança para tranquilidade dos cidadãos – algo que hoje podemos dizer.
Mas não se assumiram responsabilidades nessa situação?
Vou repetir pela centésima vez: a responsabilidade pelo furto de Tancos vai resultar da investigação que está a ser levada a cabo pelas autoridades competentes. O Ministério Público entendeu avocar o processo, que estava inicialmente apenas na Polícia Judiciária Militar, entendeu atribuir a investigação criminal a título dominante à policia judiciária e ao SIAPE. Temos que aguardar tranquilamente.
Falava da responsabilidade do Exército, assumida. Não houve responsabilidade, houve apenas processos disciplinares.
Houve processos disciplinares e houve a responsabilidade que resulta de definir muito rapidamente o que é que estava a correr mal e corrigir imediatamente o que mal estava a decorrer. Tenho alguma dificuldade em explicar que se resolva um problema cortando cabeças. Em todos os casos que conheço – e alguns deles foram muito impressionantes – de furtos de material militar verificados em países congéneres de França ou Estados Unidos, nunca vi demissões de chefias militares. Nunca vi demissões de políticos. Vi sim medidas, às vezes draconianas, para restabelecer a segurança. Ao contrário do que as pessoas pensam, posso garantir que não somos uma originalidade.
O que é que ainda falta quanto a este assunto? Falta aquilo a que me comprometi: um dossiê onde, de forma sistemática, se descreva o que já se sabe quanto ao que aconteceu. Repito, sem nunca interferir na investigação criminal quanto à autoria, cumplicidade e comparticipação, sabendo que esse elemento é absolutamente decisivo para conseguir compreender o que é que aconteceu.
Mas e a responsabilidade pelo estado das instalações?
Com certeza, é um estado preocupante há muito anos. Quando o dossiê for divulgado se verá, porque isto não é para transferir para o passado as responsabilidades. É para verificar que, ao contrário do que pensamos, as quebras de segurança, as falhas, muitas vezes, correspondem a processos muitos longos de rotinas que se vão instalando, da ausência de meios e de recursos humanos a uma determinada função. E por aí adiante...
E as pessoas vão-se habituando a achar isso normal?
É um bocado isso. Somos um país muito pacífico e às vezes imagino que possamos irmo-nos habituando à ideia de que nada acontece. Por mérito de quem estava já a investigar, que conseguiu exercer pressão suficiente para o efeito, o material foi recuperado, com exceção das munições de 9 mm. Isso é um aspeto importantíssimo para poder serenar os cidadãos quanto à possível utilização daquele material em circunstâncias que nem é preciso explicar. Recordo que se falou em terrorismo internacional. Houve quem garantisse que já estava no Mali, que já estava no Médio Oriente, que já estava nas mãos do Daesh.
Há ecos de um certo descontentamento e mal-estar nas Forças Armadas. Diria que isso é só uma perceção?
Eu já ouço arautos da desgraça a falarem do mal-estar nas Forças Armadas, sem querer ser irónico, praticamente desde o 25 de Abril.
O Expresso avançou no sábado que os quatro chefes militares tomaram uma posição inédita e enviaram-lhe um memorando em que acusam o Governo de tratar as Forças Armadas com "iniquidade" e de pôr em causa a "segurança coletiva".
Apanhou-o de surpresa este memorando?
Não apanhou nem deixou de apanhar. Aliás, o mais importante é a circunstância de os chefes militares, com lealdade, terem, no próprio dia da divulgação, aclarado o que é que pretendiam com o memorando.
Nesse comunicado, os quatro chefes militares dizem que "não esteve, não está, nem estará em causa o cumprimento das missões das Forças Armadas". Pareceu um desmentido ao próprio memorando...
Não entendo isso como um desmentido. Destaco o seguinte: as chefias militares e o chefe de Estado Maior General das Forças Armadas insistiram com meridiana clareza na relação de lealdade institucional e de cooperação que têm com o Governo e, em particular, com o ministro da Defesa Nacional. É importante que isso de vez em quando seja dito publicamente sem qualquer complexo. Em segundo lugar, destacam que em nenhuma circunstância deixarão de ser cumpridas missões das Forças Armadas.
É aí que parece haver uma contradição, já que o memorando dizia que podem estar em causa o cumprimento de missões.
Entendi [o comunicado emitido depois do memorando] como uma aclaração para evitar equívocos alarmistas. O mais importante na aclaração é o seguinte: quaisquer que sejam os efetivos, as prioridades quanto às missões serão sempre estabelecidas. E são sempre estabelecidas: o bom é inimigo do ótimo, se não é possível realizar 100% vai-se realizar 95% - e isso não me incomoda nada, faz parte da adaptação à realidade.
Hoje, a vida política tem uma circunstância absolutamente constante: a diferença entre o que gostaríamos imenso de poder fazer e aquilo que podemos realmente fazer. Não vejo porque é que as Forças Armadas haviam de ser diferentes de qualquer outro setor da sociedade.
Para terminar, falemos do Afeganistão, para onde vamos em Abril. Estão reunidas todas as condições para que seja uma participação segura?
Não estão reunidas todas. Estarão quando formos porque está ainda o aprontamento da missão a decorrer e, aliás, se viu hoje [quarta-feira] as notícias, por exemplo, e por solicitação do Exército, entendeu solicitar-se, neste caso aos Estados Unidos, a cedência de material particularmente bom do ponto de vista da blindagem para garantir ao máximo a segurança dos nossos militares.
Portugal vai pedir emprestado 20 blindados aos Estados Unidos para poder cumprir a missão de apoio à paz da NATO no Afeganistão. Portugal não tinha condições para levar viaturas?
Há situações em que não faz sentido ser proprietário de uma viatura para andar dois passos. Este é seguramente um caso em que, no planeamento das aquisições de equipamento e de capacidades, aquilo que integra a lei de programação militar, não foi até agora tido como prioritário. Ora, se um país amigo nos cede rapidamente o material que precisamos para uma missão única e específica, porventura não se justifica adquirir essas viaturas blindadas. E [podemos] investir, como estamos a investir, noutras dimensões.
Está a decorrer o concurso para a aquisição da nova arma ligeira, que é uma coisa que me diziam que era impossível conseguir, que nunca se conseguia. Já estamos há tantos anos a tentá-lo e vai-se conseguir. Também está a decorrer o concurso, em fase adiantada, para aquisição de uma viatura 4x4 que, por exemplo, é perfeitamente adaptada a missões do tipo da República Centro-Africana.