O facto de um médico não ter informado devidamente uma família que esperava um bébé com deformações tão profundas que tornam a vida futura do recém-nascido a priori “inviável” é obviamente notícia.
Uma notícia que questiona a qualidade da medicina praticada pelo clínico, chefe de serviços há décadas num hospital público, em simultâneo com a prática enquanto sócio de clínica privada, exatamente de ecografias. Não tem rigorosamente nada a ver com uma posição pró ou contra o aborto.
O caso coloca-se, a um outro nível, embora também possa ter implicações legais, e esse é o da boa ou má prática médica e da confiança que devemos e podemos ter em todo um sistema de saúde. Todos os pais, independentemente das suas convicções, têm o mesmo direito a uma informação correta, de acordo com o melhor estado da ciência médica, sobre a saúde do filho que esperam.
É bom que se compreenda que as ecografias existem para que a gravidez possa ser acompanhada pelos pais e pelos clínicos com o máximo de informação possível. Após uma gravidez de alto risco, um dos meus filhos tinha à nascença uma equipa de cardiologia em alerta preparada para intervenção prematura caso fosse necessária. Não foi precisa e o coração do bebé não revelou nenhum problema como se temia intra-útero. É também para isso que serve um bom acompanhamento pré-natal.
A lei portuguesa permite o aborto livre “por vontade da mulher”, simplesmente a pedido e sem necessidade de justificação até às dez semanas. E em caso de malformação fetal ou incapacidade psíquica da mãe permite-o em prazos muito mais alargados, que se estendem até às 12 ou 24 semanas (altura em que muitos bebés já conseguem sobreviver enquanto prematuros). Mas no caso de fetos considerados “inviáveis”, como parece ser o caso do bebé de Setúbal, a lei não estabelece nenhum prazo e a intervenção abortiva pode ser praticada até ao final da gravidez.
Os pais, ignorantes da malformação não detetada na clínica de Setúbal, onde foram seguidos sempre pelo mesmo médico, não puderam usar o direito que a lei lhes confere. Mas para quem, como eu, defende que a lei não deveria existir e que toda a vida merece ser vivida, mesmo que por umas horas, a questão legal é a que menos importa. Importa a questão moral e esta implica que, mesmo um casal profundamente anti-aborto e mesmo num caso de um médico obstetra eventual “objetor de consciência”, ou seja, um médico que não esteja disposto a colaborar num aborto a pedido pelos pais, uma situação como esta nunca poderá acontecer e é absolutamente lamentável que tenha acontecido.
Está em causa a péssima qualidade da clínica privada em causa e/ou a má pratica clínica aparente de um chefe de serviços de um hospital público da dimensão do S. Bernardo. Exigem-se rápidas explicações e fica claro que a bondade ou qualidade dos serviços médicos prestados não é exclusiva nem da propriedade privada nem pública da unidade de saúde a que o cidadão recorre. No caso em concreto, ambas parecem ter deixado o cidadão em risco face aos serviços que prestam, o que mina fatalmente a confiança em todo o sistema.
Dar conta desta deficiência não é fazer campanha pró-aborto nem legitimar as teses mais ou menos eugenistas que agora dominam as grandes correntes de pensamento nas sociedades modernas. Ser pró-vida implica reconhecer a dignidade plena das vidas, quer estas à partida sejam identificadas com maior ou menor qualidade. Coxos, cegos, surdos, paralíticos, doentes de múltiplas patologias fazem parte da diversidade da vida e os que sofrem de perto com todas as patologias, mesmo as mais pesadas, sabem o que cada uma delas acarreta de enriquecimento, tantas vezes emocional, mas não escondem o sofrimento inerente ao acolhimento de cada limitação. Não nos cabe dizer que há vidas que não valem a pena ser vividas. O que se está a passar com as crianças atingidas pelo síndrome de Down mostra até que ponto nos pode levar a mentalidade puramente eugenista.
Essa aceitação da chamada “deficiência” não passa pelos pais enterrarem a cabeça na areia e muito menos pelos médicos negligenciarem todo o tipo de informação relevante. Pelo contrário, a partilha da informação disponível e a sua obtenção atempada é um direito que o atual estádio da medicina garante aos que vivem em países onde podem recorrer a uma gravidez acompanhada. E são, infelizmente, ainda e só uma pequena percentagem da humanidade. O grau de erro cometido, neste caso, é grave demais. Se não se trata de negligência grosseira nem de falta de meios técnicos adequados é urgente que se obtenha informação total. A Ordem dos Médicos também nos deve explicações a todos.