É um vídeo de meia dúzia de segundos que alguém pôs a correr na internet. Numa pausa da cimeira do G20 em Hamburgo, no fim-de-semana, o Presidente russo conversa com a chanceler alemã e, a certa altura, Angela Merkel roda um pouco a cabeça e revira os olhos numa expressão que denota um misto de enfado e incredulidade perante aquilo que ouvia.
Uma expressão que, se fosse verbalizada, seria algo como “Oh não, outra vez não. Pronto, lá vem ele outra vez com a mesma conversa!”.
O conteúdo da conversa é desconhecido, mas a expressão de Merkel é claramente a de alguém que está a ouvir algo a que não atribui qualquer credibilidade, mas que ao mesmo tempo não lhe causa espanto por vir de quem vem.
A interpretação é especulativa, mas ganha legitimidade se nos recordarmos daquilo que sucedeu em 2014 quando tropas russas invadiram a Crimeia vestidas com uniformes sem identificação e o Kremlin negou que fossem soldados seus. Nessa altura, o então Presidente americano, Barack Obama, confiou que a boa relação de Merkel com Putin ajudasse a chamar o líder russo à razão.
A chanceler terá sido a primeira dirigente ocidental a conversar ao telefone com o chefe do Kremlin e no final relatou a Obama que Putin “não estava neste mundo”. Traduzindo: Putin negou a Merkel aquilo que estava evidente aos olhos de todo o mundo – as tropas que tinham entrado na Crimeia não eram russas.
Não foi a primeira vez que o fez em conversas com congéneres ocidentais. Em telefonemas posteriores com Obama, Putin voltou a negá-lo, segundo o relato recente de assessores da Casa Branca.
Com a sua proverbial fleuma, Obama ter-lhe-á ripostado: “Vladimir, nós vemos as imagens, sabemos o que se passa”. Havia, entre muitas outras provas, gravações de telefonemas e mensagens de soldados russos – os tais em uniformes “neutros” – para as famílias a descrever o que estava a passar-se na Crimeia.
Merkel e Obama testemunharam assim ao vivo que Putin não hesitava em negar a mais evidente realidade desde que isso conviesse aos seus interesses. Que Putin parecia “não estar neste mundo”, quase no sentido esquizofrénico da expressão, ao negar a realidade. Que Putin era capaz de criar afinal a sua realidade alternativa, os seus factos alternativos, desde que isso correspondesse aos seus interesses políticos.
Só o apurado cinismo do Kremlin se exibia nesse tempo na arena internacional sem qualquer rival à altura. Mas os tempos mudaram e hoje em Washington cultivam-se também factos e realidades alternativas. Com uma grande diferença, porém: enquanto Moscovo possui uma longa tradição e uma douta escola na matéria, a actual Casa Branca dá os primeiros passos na disciplina e tropeça na sua ignorância, impreparação e incompetência.
Intromissão na campanha
A cimeira de Hamburgo foi um exemplo disso mesmo. A questão do envolvimento do Kremlin na campanha eleitoral americana foi aquela em que a Casa Branca mais se esforçou por retirar dividendos políticos. Mas o resultado foi caricato.
Mal terminou o encontro entre Trump e Putin, o secretário de Estado americano, Rex Tillerson, disse que o Presidente tinha “confrontado” o líder russo com a interferência na campanha, escolhendo cuidadosamente o verbo para dar a entender que Trump tinha sido duro.
O Presidente disse que estava a ser pressionado pelo Congresso para reforçar as sanções à Rússia por causa do assunto, mas Putin negou, naturalmente, qualquer intromissão do Kremlin e os dois líderes decidiram passar adiante.
Tillerson, o único membro da administração americana presente no encontro, deu esta versão da reunião. Mas o seu homólogo russo disse mais tarde que Trump tinha acrescentado que não havia provas da interferência russa, contrariando tudo aquilo que os serviços secretos americanos apuraram sem margem para dúvidas.
Poderíamos ficar na dúvida sobre qual das versões é mais fiel ao que se passou, mas Trump encarregou-se de a desfazer. Já no domingo, em Washington, “twitou” o seguinte: “Pressionei fortemente o Presidente Putin duas vezes sobre a intromissão russa na nossa eleição. Ele negou veementemente. Eu já dei a minha opinião…”. Atente-se nas reticências.
O tema, que é de longe o mais incómodo para Trump e que pode conduzir a um processo de “impeachment”, foi portanto tratado na cimeira entre os dois líderes como uma “realidade alternativa”. Trump fez de conta que estava incomodado com o assunto e perguntou a Putin se houve qualquer intromissão russa. Putin, que sabia que Trump estava a fazer “bluff", fez de conta que não houve qualquer intromissão russa e garantiu-o com veemência. Trump fez de conta que acreditou na palavra de Putin e confessou que também ele acha que não houve intromissão. Tudo está bem quando acaba bem.
Parceria na cibersegurança
Mas não acabou aqui. Porque Trump decidiu ir mais longe no Twitter e revelou que ele e Putin tinham “discutido a formação de uma unidade de cibersegurança impenetrável para que não haja mais pirataria eleitoral e muitas outras coisas negativas”.
O secretário do Tesouro, Steve Mnuchin, não se coibiu de chamar a esta ideia “um importante passo em frente”, uma “aliança estratégica”, para “garantir que nos coordenamos com a Rússia na cibersegurança” e para “termos a certeza que eles não interferirão em quaisquer eleições democráticas”. Um “grande sucesso” para Trump, elogiou.
Dito de modo mais directo: a ideia é trabalhar em conjunto na espionagem electrónica com quem nos está a espiar. Uma ideia suficientemente bizarra para desencadear uma torrente de reacções, com três destacados senadores republicanos na linha da frente.
Marco Rubio, da Flórida, escreveu que “aliar-se a Putin numa unidade de cibersegurança é como aliar-se a Assad numa unidade de armas químicas”. John McCain, do Arizona, ironizou na televisão: “Tenho a certeza que Putin seria de grande utilidade nesse esforço porque é ele que está a fazer a pirataria”. E Lindsey Graham, da Carolina do Sul, não teve contemplações: “Não é a ideia mais imbecil que já ouvi, mas anda lá perto”. Ashton Carter, o último secretário da Defesa de Obama, fez uma analogia idêntica à de Marco Rubio: “Isto é como o tipo que roubou a sua casa propor um grupo de trabalho sobre roubos”.
Os comentários parecem ter feito Trump recuar na bizarria. Aquilo que de manhã era anunciado como estratégico, desaparecia ao pôr-do-sol. “O facto de o Presidente Putin e eu termos discutido uma unidade de cibersegurança não quer dizer que eu ache que ela possa surgir. Não surgirá”, twitou o volúvel Presidente.
Estava enterrado o “grande sucesso”, a “aliança estratégica” pela qual o secretário do Tesouro dera a cara na televisão pela manhã. Não foi a primeira vez que Trump desmentiu e desautorizou publicamente os seus subordinados e não será certamente a última.
Consistência vs. caos
Aliás, o secretário de Estado também foi desmentido na versão que deu do encontro com Putin. Tillerson disse que Trump estava a ser pressionado para intensificar as sanções à Rússia e o comunicou a Putin ao pedir explicações sobre a intromissão na campanha. No domingo de manhã, Trump garantia que “as sanções não foram discutidas no meu encontro com o Presidente Putin”.
Para o encontro bilateral com Putin, Trump fez saber que queria o mínimo de pessoas presentes para evitar fugas de informação. Por isso, só os dois presidentes e os dois chefes das diplomacias (além dos dois tradutores, claro) assistiram. Na verdade, não houve fugas de informação.
Mas do lado americano elas não são necessárias para se terem perspectivas diversas sobre a forma como decorreu o encontro. O próprio Trump se encarregou de o fazer, desmentindo aquilo que terá acertado com o seu secretário de Estado. Do lado russo, imperou a sobriedade e a consistência, como habitualmente, estejamos a falar de questões concretas ou de realidades alternativas.
Trump teve em Hamburgo a sua prova de fogo com Putin. Aparentemente, não se saiu mal, mas à medida que se vai sabendo mais sobre o encontro, vai ficando claro o vazio em que tudo decorreu. Há a promessa de um cessar-fogo conjunto no oeste da Síria, uma promessa cujo alcance ainda se desconhece por completo. E num passe de “bluff”, terá enterrado o contencioso por causa da intromissão russa na campanha eleitoral, o que convém a ambos.
De resto, já enterrou a dita parceria sobre cibersegurança e deu versões contraditórias sobre outros aspectos das conversações, o que terá desagradado aos russos. Ficou isolado nos dois assuntos de maior impacto da cimeira: o clima e o comércio livre.
Trump partilha com Putin uma visão do mundo unilateralista, proteccionista e anti-globalização. As suas afinidades com o Presidente russo são maiores do que com os líderes ocidentais, sobretudo quanto ao desprezo pela verdade, ao exercício do cinismo e ao culto pelas realidades alternativas. Mas entre um e outro intromete-se a distância que vai do profissional ao amador.