Divergem os entendimentos relativos ao parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República (PGR) quanto à greve dos enfermeiros.
Na prática, são dois pareceres que ‘grosso modo’, remetem para três conclusões:
- a greve cirúrgica é ilegal, porque esta modalidade não corresponde ao pré-aviso de greve apresentado pelos sindicatos;
- o recurso ao “crowdfunding”, ou financiamento colaborativo, não é admissível; a PGR não aceita que os trabalhadores sejam compensados por um fundo de greve que não seja constituído ou gerido pelos sindicatos que decretaram a greve;
- sobre os salários a receber pelos enfermeiros, a PGR considera que devem perder o correspondente aos períodos de greve e também em que os serviços estiveram paralisados devido a esta greve.
António Costa homologou o parecer e estende-o para lá da área da saúde, considerando que a decisão sobre o “crowdfunding” é de extraordinária importância para toda a administração pública.
Ouvido pela Renascença, o jurista Luís Gonçalves da Silva concorda com esta atuação e adverte os enfermeiros para os riscos de prosseguirem a greve.
“O direito à greve não pode ser visto – porque não é – um direito 'sacro santo'. Mal-fora que, num Estado de Direito Democrático, ele fosse inatacável e ilimitado perante todos os direitos, nomeadamente perante dois direitos que estão aqui nevrálgicos, que é o direito à vida e o direito à saúde”, sustenta.
“Este parecer foi pedido perante uma situação concreta, embora tenha questões que são transponíveis para outros elementos factuais. O ‘crowdfunding’ é um deles”, afirma o jurista, considerando que “a Procuradoria agiu bem” nesta matéria.
“De facto, não é possível ter greves financiadas por entidades anónimas, porque isso coloca em causa a independência dos sindicatos”, defende.
E, tendo em conta “alguma abstração” existente no parecer, “é uma doutrina que o Governo deve ter bem presente para atuações futuras, tal como os sindicatos – ou seja, os sindicatos também devem ter presente, para atuações futuras, as observações que são feitas”, aconselha.
No caso de não concordarem, há sempre a possibilidade de pedirem a sua ilicitude.
“Bom senso aconselharia que parecer fosse seguido”
Na opinião de Luís Gonçalves da Silva, o parecer da Procuradoria-Geral da República, tendo sido homologado, “vincula os seus destinatários”. Pode, contudo, porque “não é uma decisão de um tribunal, ser impugnado”.
O jurista considera, contudo, que é “um enorme risco aconselhar os enfermeiros a não seguir as orientações constantes do parecer”.
Isto porque, “caso não consigam mais tarde demonstrar a [sua] ilicitude, o que acontecerá é que, não cumprindo o contrato de trabalho, teremos uma falta injustificada. Sendo uma falta injustificada, que é qualificada como uma infração disciplinar, essa infração disciplinar pode dar azo ou servir de fundamento para haver justa causa de despedimento”.
“Portanto, julgo que o bom senso aconselharia que fosse seguido e se acatasse as orientações do parecer. Se não concordam com ele, então que o impugnem, pedindo a sua ilicitude e depois, em última instância, demandando o Estado por essa responsabilidade de não terem podido exercer o seu direito”, aconselha.
“Governo engana-se se pensa que consegue domar uma classe pela ameaça”
Opinião diferente tem o advogado Garcia Pereira, que representa um dos sindicatos que convocaram a greve cirúrgica. À Renascença, defende que o despacho do primeiro-ministro é limitado à greve em causa e contesta as faltas injustificadas.
“Faltas injustificadas, vamos lá a ver. Faltas injustificadas têm de ser marcadas, têm de ser objeto de um processo disciplinar, no qual há lugar à defesa. Darão lugar a uma decisão e tudo isso é impugnável judicialmente”, começa por afirmar.
“Além disso, o próprio procedimento que visa construir processos disciplinares é também em si mesmo impugnável”, acrescenta, dizendo que as medidas de reação à decisão do Governo ainda estão a ser discutidas.
Uma coisa é certa: “os enfermeiros e as suas associações não vão ficar parados”, garante.
“Por outro lado, convém de qualquer forma dizer ao Governo que está muito enganado se pensa que, pela intimidação e ameaça, consegue domar e domesticar uma classe profissional de 45 mil pessoas que estão fartas de ser espezinhadas”, conclui.
Esta terça-feira, o Ministério da Saúde já veio confirmar que, a partir de quarta-feira (amanhã), os enfermeiros que faltarem por fazer greve terão falta injustificada.
A comunicação surge depois de publicada em Diário da República a decisão da Procuradoria a considerar a greve dos enfermeiros ilegal.
A reação dos dois sindicatos que convocaram a greve cirúrgica divergiu. O Sindicato Democrático dos Enfermeiros de Portugal prefere manter a greve, mas diz que, face às ameaças das administrações hospitalares, os profissionais podem optar por ir trabalhar.
“No entanto, vamos apresentar uma queixa-crime contra essas instituições", avançou Carlos Ramalho à Renascença.
Do lado da Associação Sindical Portuguesa de Enfermeiros, Lúcia Leite diz que a suspensão da greve é a decisão que melhor protege os enfermeiros.