Joseph Ratzinger, quando em 19 de abril de 2005 acede ao sólio pontifício, depara-se com o desafio imenso de dar o passo de grande académico a pastor. A profundidade dos seus conhecimentos de teologia passa a estar ao serviço do seu ministério como bispo de Roma e sucessor de Pedro. Os vários testemunhos que temos ouvido ao longo destes dias sublinham de forma evidente esta mudança. Um dos aspectos inerentes são as suas referências ao perdão determinadas por situações concretas.
Perdoar, do latim per-donare, dar-se na totalidade, foi tónica constante no papado de Bento XVI. Em 24.7.2009, numa homilia em Aosta, sublinha que «perdoar não é ignorar mas transformar», precisamente o que o Senhor Jesus fez na cruz ao dar a sua vida por nós: «O ápice do poder de Deus é a misericórdia, o perdão. …Na misericórdia Deus demonstra o verdadeiro poder…. Perdoar não é ignorar, mas transformar, ou seja, Deus deve entrar neste mundo e opor ao oceano da injustiça um oceano maior do bem e do amor. É este o acontecimento da Cruz: a partir daquele momento, contra o oceano do mal, existe um rio infinito e por isso cada vez maior que todas as injustiças do mundo, um rio de bondade, de verdade e de amor. Assim Deus perdoa transformando o mundo e entrando no nosso mundo para que haja realmente uma força, um rio de bem maior que todo o mal que jamais possa existir».
No seu testamento espiritual e na declaratio de resignação ao ministério petrino, Bento XVI pede perdão aos seus irmãos do fundo do coração: «A todos aqueles a quem fiz mal de algum modo, peço perdão do coração». (Testamento espiritual, 29.08.2006); «Caríssimos irmãos, verdadeiramente de coração vos agradeço por todo o amor e a fadiga com que carregastes comigo o peso do meu ministério, e peço perdão por todos os meus defeitos» (Declaratio de renuncia ao ministério de Bispo de Roma e de Sucessor de São Pedro, Vaticano, 10.2.2013).
Por último gostaria de referir as suas palavras sentidas de um cristão de 95 anos, contidas numa carta aos fiéis de Munique (2022), na Alemanha, sobre a pedofilia clerical. O Papa emérito afirma: «Às palavras de gratidão segue-se agora necessariamente também uma confissão. Impressiona-me cada vez mais fortemente que, dia após dia, a Igreja coloque no início da celebração da Santa Missa – na qual o Senhor nos dá a sua Palavra e a Si mesmo – a confissão da nossa culpa e o pedido de perdão. Publicamente pedimos ao Deus vivo que perdoe a nossa culpa, a nossa tão grande culpa. É claro que a expressão “tão grande” não se refere da mesma forma a todos e cada um dos dias. Mas cada dia me questiona se não devo, também hoje, falar de tão grande culpa. E consoladoramente diz-me que, por maior que possa ser a minha culpa, o Senhor perdoa-me, se me deixo sinceramente perscrutar por Ele e estou realmente disposto à mudança de mim mesmo. … Como fiz naqueles encontros, mais uma vez posso apenas expressar a todas as vítimas de abusos sexuais a minha profunda vergonha, a minha grande dor e o meu sincero pedido de perdão.
Em breve me encontrarei perante o último juiz da minha vida. Embora ao olhar retrospectivamente a minha longa vida possa ter tantos motivos de susto e de medo, todavia estou com o coração feliz porque confio firmemente que o Senhor não é só justo juiz, mas simultaneamente é o amigo e o irmão que já padeceu, Ele mesmo, as minhas deficiências e, consequentemente, ao mesmo tempo é juiz e meu advogado (paráclito)».
Esta carta reúne as palavras de um cristão que sente a proximidade do encontro definitivo com Deus, o Deus misericórdia que acolhe e perdoa. Bento XVI pede sinceramente perdão sem querer fugir à dramaticidade concreta dos problemas, e convida toda a Igreja a unir-se à sua dor e á de todos aqueles que sofreram abusos. Em suma, a dar-se totalmente numa compaixão experimentada, unida aos sofrimentos de Cristo, da Igreja e de todos os homens e mulheres de boa vontade, certo de que «perdoar não é ignorar, mas transformar».