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Agora parece que foi noutra vida. Para muitos de nós em África, a Covid-19 não era mais do que um recém-nascido energético e aos gritos a tentar entrar nas nossas cabeças, quando, em março de 2020, decidimos tirar umas curtas férias da Gâmbia, onde vivemos. A minha mulher Helen, e eu, estamos a trabalhar num projeto de longo curso a registar em vídeo e em fotografia as vítimas do regime autoritário de Yahya Jammeh e sentíamo-nos esgotados. Umas férias no Reino Unido era tudo o que precisávamos para nos dar uma perspetiva nova, pensámos.
Uma semana depois de aterrar em Londres o primeiro caso de Covid-19 foi reportado na Gâmbia e o Presidente Adama Barrow fechou rapidamente as portas de entrada para a “Costa sorridente de África”, como lhe chamam, encerrando as fronteiras terrestres, aéreas e marítimas. Sem podermos regressar, demos por nós naufragados em casa da minha mãe no Reino Unido, numa pitoresca aldeia inglesa. Fomos prestando atenção ao que se passava na Gâmbia à distância, através de amigos locais e de outros expatriados. Os expatriados tinham entrado em isolamento e dependiam de entregas dos supermercados indianos, vivendo permanentemente preocupados que as clínicas e os hospitais locais não teriam a formação ou as infraestruturas para os ajudar se ficassem infetados.
Pouco depois o Presidente Barrow declarou o estado de emergência e tornou-se obrigatório o uso de máscara. Os locais de culto e todas as lojas não-essenciais foram encerrados. Ajuntamentos de mais de dez pessoas foram proibidos e os famosos táxis do mato tiveram de reduzir a sua lotação em 50%, não deixando, por isso, de parecer latas de sardinha ambulantes.
A Gâmbia é um dos países mais densamente povoados de África, com várias gerações da mesma família a viver juntas em casas apertadas, muitas vezes em bairros com fornecimento de água errática e problemas de saneamento. Em conversas com os nossos amigos, através do WhatsApp, eles manifestavam medo pelo que viam a passar-se em países altamente desenvolvidos como Espanha e Itália. Se o vírus tomasse a Gâmbia da mesma forma, seriam totalmente devastados.
À medida que a primavera deu lugar ao verão e a Covid se espalhou por grande parte do mundo desenvolvido, chegou a época das chuvas à república fluvial da Gâmbia, mas os casos de Covid não aumentaram com a subida dos níveis da água. Em finais de julho, o número de mortes por Covid-19 era, miraculosamente, de apenas nove pessoas, numa população de dois milhões. Mas apesar de haver poucos casos, o confinamento estava a ter um efeito devastador nos rendimentos, num país em que muitos vivem da economia de subsistência. O nosso amigo Buba, que conduz um táxi de turistas, disse que estava a sobreviver à base de dinheiro enviado por europeus, antigos clientes que o queriam ajudar a ele e à família, uma vez que o seu negócio estava arruinado. Muitos outros gambianos dependem de remessas enviadas por parentes que vivem no estrangeiro e por causa dos confinamentos e das restrições na Europa, as transferências regulares da Western Union não estavam a chegar.
Durante a pandemia temos estado em contacto regular com um pequeno grupo de vítimas que tínhamos fotografado para o nosso trabalho e que tinham sido enviados da Gâmbia para a Turquia no início de 2020 para receber tratamento para os efeitos a longo prazo dos seus ferimentos. Tinham sido alvejados pelas forças de segurança de Yahya Jammeh durante os protestos estudantis de 2000.
Os tratamentos foram adiados por causa da pandemia e estão num limbo, à espera num pequeno apartamento em Ancara. Oumie, que levou dois tiros no braço enquanto procurava salvar uma menina de idade escolar, ligava quase todas as semanas e falávamos com o grupo todo em alta voz. Há quase duas décadas que esperavam por este tratamento e para o Yusupha este mais recente atraso na obtenção de cuidados médicos foi aceite com uma esperança resignada e tranquila. “Em breve, inshallah, em breve”, dizia.
Escrevo no dia 7 de novembro. Regressámos à Gâmbia há três semanas e finalmente conseguimos voltar a trabalhar. As fronteiras reabriram para voos de repatriação e conseguimos juntar a documentação necessária para podermos voltar a entrar – desde que pudéssemos mostrar um teste negativo no espaço de 72 horas depois de chegar, mostrando que estávamos negativos.
O número total de mortes confirmadas por Covid-19 é “apenas” 121 e por causa dos números baixos o Presidente voltou a abrir todas as fronteiras e o país está a começar a aproximar-se mais uma vez da normalidade, o que se fez acompanhar de um certo laxismo. Muitas lojas têm sinais a dizer que é proibida a entrada sem máscara. Há dias estava a pôr a minha para entrar num supermercado e um homem passou à minha frente. “Não se esqueça da máscara, ou não o deixam entrar” disse-lhe eu, ao que ele respondeu: “Não faz mal, eu não preciso. Trabalho aqui”.
No Reino Unido entrou em efeito um confinamento nacional e por isso agradecemos estar de volta à “costa sorridente”. Daqui a pouco vamos à praia ter com um casal amigo e com a sua filha. Eles deixaram o país há sete meses, partindo do princípio que seria melhor estar na Europa, com um sistema de saúde sofisticado. Regressaram, entretanto, numa altura em que “Toubabadoo”, como os gambianos chamam ao mundo ocidental, é varrida por uma segunda vaga. Eu não conseguia deixar de pensar em Trump a chamar “merdosos” aos países africanos. Apesar de eu ter vivido 25 anos nos Estados Unidos, preferia arriscar num destes “países merdosos” até que o Ocidente comece a lidar melhor com a pandemia.
A época turística na Gâmbia costuma começar em outubro/novembro e é responsável por 30% do PIB nacional. Os hotéis e os restaurantes já começaram a abrir lentamente na esperança, tal como o nosso amigo taxista Buba, que os voos de “Toubabadoo” comecem a chegar este mês. Com a segunda vaga que a Europa atravessa, porém, isso parece pouco provável. Mas tal como o Yusupha, que aguarda pela sua cirurgia em Ancara, os gambianos com quem falamos continuam tranquilamente esperançosos.
*Jason Florio é um fotógrafo premiado que vive e trabalha na Gâmbia. Natural de Londres, está a trabalhar com a sua mulher num projeto que documenta as experiências das vítimas do regime ditatorial de Yahya Jammeh. As fotografias que ilustram este postal são de algumas dessas vítimas e fazem parte de um trabalho que pode conhecer melhor aqui.