As propostas de revisão constitucional dos dois principais partidos podem ser incompatíveis com a Convenção Europeia dos Direitos Humanos. É essa a opinião de Teresa Violante.
A constitucionalista lembra que a jurisprudência do Tribunal de Estrasburgo apenas admite o isolamento compulsivo de doentes infetados com doença contagiosa como última solução. Haveria "problemas sérios de incompatibilidade, não pelo facto de o isolamento poder ser decidido por uma autoridade administrativa (versão do PS), mas porque não aparece formulada como uma decisão de último rácio", explica a especialista à Renascença.
"O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos tem jurisprudência relativamente a estas questões, sobretudo nas decisões infecciosas, e há jurisprudência relativamente a infeções por VIH/SIDA, mas ainda não há em relação à pandemia Covid. Essa jurisdição é muito clara relativamente a isso, tem de ser uma solução de último recurso. O Estado tem de demonstrar que, naquele caso concreto, não haveria nenhuma outra solução possível que não a privação da liberdade.”
O que propõem PS e PSD?
Quer o projeto do PS quer o do PSD querem resolver, através da oitava revisão constitucional, a questão do isolamento em situação de emergência sanitária, para que não se repitam no futuro os problemas jurídicos surgidos com as medidas aprovadas durante a pandemia e nomeadamente com o Tribunal Constitucional.
O projeto do PS concede às autoridades de saúde o poder de decretarem o confinamento obrigatório de pessoa portadora de doença contagiosa grave ou relativamente à qual exista fundado receio e propagação de doença ou infeção graves.
Já o do PSD considera que a decisão só pode ser determinada por um juiz. A versão socialista prevê apenas a intervenção da autoridade judicial em recurso.
O PSD prevê também que o estado de sítio ou de emergência possam ser declarados em situação de emergência de saúde pública. O PS não alarga as situações em que podem ser decretados os estados de exceção.
Medidas anti-Covid não tinham apoio constitucional?
Tanto o constitucionalista Paulo Otero como o seu colega da Universidade Católica, Jorge Pereira da Silva, convergem na ideia de que, com as soluções que apresentararam, PS e PSD fazem uma confissão implícita de que grande parte do que foi feito durante a pandemia, sem estado de emergência, não tinha suporte constitucional. E de alguma forma o Tribunal Constitucional está nos últimos meses a declarar essas situações como desconformes com a Constituição.
Na avaliação do mérito das soluções apresentadas, Paulo Otero critica sobretudo o projeto socialista. Defende que não faz sentido incluir um artigo na Constituição a admitir o isolamento de pessoas com doença contagiosa. Para o especialista em assuntos constitucionais, a melhor solução seria alargar a declaração de estado de emergência a situações de saúde pública.
"Alargar o artigo 19, admitindo expressamente o estado de necessidade sanitária, remetendo para o legislador a competência para depois o densificar”, explica Otero. O professor da Faculdade de Direito de Lisboa defende que “nem a Constituição de 1933 foi alguma vez tão longe”.
Em convergência com o seu colega constitucionalista, Teresa Violante diz que “isto é uma credencial para um estado autoritário de emergência sanitária e só não me escandaliza por aí além porque não acredito que o texto que conhecemos (da autoria de uma comissão técnica liderada pelo antigo presidente do Supremo Tribunal de Justiça António Henriques Gaspar) seja aprovado pelos deputados.”
E o "imbróglio" dos metadados?
Paulo Otero defende que, “na base de tudo isto, há um vício desta Constituição e um vício que a revisão poderia aproveitar, e era a meu ver uma benfeitoria necessária para corrigir. Era necessário fazer uma certa lipoaspiração à Constituição, porque ela tem coisas a mais.
"É excessivamente detalhada, qualquer dia a Constituição Portuguesa fica igual à brasileira, não uma Constituição de princípios, mas uma Constituição-regulamento, com um detalhe, com um pormenor… Não é este o sentido de uma Constituição.”
O constitucionalista da Universidade Católica Jorge Pereira da Silva é muito crítico também da solução proposta para “outro dos imbróglios com o TC”, que os deputados do PS e do PSD querem resolver através da revisão constitucional: a legislação dos metadados, já chumbada duas vezes pelo Tribunal Constitucional.
Os metadados são dados de tráfego, de localização, para identificar um determinado assinante ou utilizador e dizem respeito a diferentes formas de comunicação, desde correio eletrónico a mensagens de texto, passando por chamadas telefónicas.
O que está em causa é dar o acesso a esses dados aos serviços de informações, para salvaguarda da defesa nacional e prevenção de atos de sabotagem, terrorismo e criminalidade altamente organizada.
Há intromissão nos direitos fundamentais dos portugueses?
PS e PSD concordam em fazer depender de uma ordem judicial esse acesso. E ambos também propõem que os cidadãos tenham controlo sobre os seus próprios dados: o PS através da inscrição do direito ao esquecimento digital e o PSD pelo direito ao apagamento dos dados pessoais -- garantias que Jorge Pereira da Silva diz serem redundantes.
"Os partidos têm de decidir se querem uma revisão amiga dos direitos fundamentais ou se querem uma revisão para os restringir. É claro que depois vêm dar o direito ao esquecimento, mas não dão coisíssima nenhuma, porque o direito ao esquecimento resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia e do Regulamento Geral de Proteção de Dados. E portanto nós podemos repetir aqui na Constituição Portuguesa, mas o máximo que conseguimos é eventualmente muita discussão sobre o alcance do direito num sítio e noutro.”
A professora Teresa Violante também reconhece que é mais uma intromissão nos direitos fundamentais. Mas lembra que "Portugal é o único, ou um dos únicos países da União Europeia, a não permitir aos serviços de informação o acesso aos metadados”.
Teresa Violante considera justificada a oitava revisão constitucional, quer para responder às duas questões (metadados e confinamento), quer numa versão mais vasta. E lembra que a Constituição alemã, datada de 1949, já foi alterada mais de 60 vezes.
Esta revisão vai ficar pelo caminho?
Jorge Pereira da Silva conclui dizendo não acreditar que a revisão constitucional vá por diante
“Efetivamente tenho dúvidas de que este processo vá em frente. Acho que há alguns sinais de que pelo menos o Partido Socialista não tem grande vontade de avançar. A verdade é que todas as revisões são feitas por acordo entre os dois principais partidos, PS e PSD, e depois da crise financeira, da intervenção da Troika, da geringonça, há um afastamento claro desses partidos que constituíam o centro. E não vejo porque é que agora, tendo o PS maioria absoluta, vai entrar num acordo com o PSD. Não vejo que vantagens políticas é que possa ter nisso.”
As declarações integram o último episódio do programa de informação da Renascença Em Nome da Lei, e que na edição deste sábado debate a revisão constitucional. Sete partidos já entregaram projetos, cuja discussão começará em dezembro, depois da aprovação do Orçamento do Estado para 2023 (OE 2023).
E afinal, o que está em cima da mesa?
Quer os socialistas quer os social democratas queram aproveitar o processo aberto pelo Chega para viabilizar leis que têm merecido uma sucessiva rejeição do Tribunal Constitucional e em relação aos quais o Presidente da República tem chamado a atenção do Parlamento.
O PS quer uma revisão ordinária e deixar para uma extraordinária outras alterações constitucionais, tendo no entanto avançado com algumas alterações em matéria de direitos e deveres fundamentais, incluindo entre as tarefas fundamentais do Estado, a erradicação da pobreza, a coesão territorial e o combate às alterações climáticas.
Em matéria de Saúde, incluiu os cuidados paliativos e a saúde reprodutiva entre os direitos constitucionalmente protegidos. Em matéria de Ensino, além do básico, o pré-escolar e o secundário universal passam também a ser obrigatórios e gratuitos. O bem estar animal ganha garantia constitucional.
O projeto de revisão do PS é, ainda assim, muito menos ambicioso do que o do PSD, que propõe uma reforma do sistema político que passaria pela alteração do mandato do Presidente da República para um único mandato, de sete anos, mas com mais poderes, nomeadamente o de nomear o governador do Banco de Portugal, PGR e o presidente do Tribunal de Contas.
A proposta social democrata passa ainda por uma redução do número de deputados, a possibilidade de realizar referendos no mesmo dia das eleições, o direito de voto aos 16 anos e a extinção do cargo de representante da República para as Regiões Autónomas. Prevê também “o recurso de amparo” para o Tribunal Constitucional, contra "decisões judiciais violadoras de direitos, liberdades e garantias”.
Esta última medida é criticada pelos três constitucionalistas ouvidos no Em Nome da Lei, sob o argumento de que pode dar origem a uma avalanche de processos, provocando o colapso do Tribunal Constitucional por manifesta falta de meios.