No Douro há “anjos” que combatem o “isolamento digital” dos jovens
17-04-2020 - 07:57
 • Olímpia Mairos

Associação sem fins lucrativos está a apoiar o percurso escolar de crianças e jovens mais vulneráveis da região do Douro. Mas não só. “É essencial na vida da família”.

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A Bagos d´Ouro tem como principal preocupação identificar os jovens e crianças com potencial e mérito, para assegurar que constroem um percurso académico de sucesso.

“Posso dizer com grande orgulho que tem sido o nosso anjo da guarda. Porque nem a nós, como agregado familiar, deixam faltar nada e, principalmente, que é o destaque deles, aos alunos do Douro”, conta à Renascença Andreia dos Santos.

Andreia tem dois filhos: o João, com 16 anos, que está no 10ºano, e a Elsa Margarida, com sete anos, no 2.º ano. A associação apoia a família “com material, com roupa, com calçado, com aquilo que as crianças vão precisando”.

É assim ao longo de todo ano, mas, neste tempo de confinamento, o apoio assume um relevo especial, “porque, mesmo estando todos separados uns dos outros, nem assim deixam de dar apoio, por videochamada, por telefone”, sublinha esta habitante do concelho de Murça.

Andreia destaca a criação de um grupo online, onde vão comunicando uns com os outros e onde partilham as várias atividades em comum, “para que as crianças possam passar melhor o tempo e não sintam tanto a falta dos amigos”.

“Um anjo caído do céu”

“Só posso dizer que é um enorme orgulho pertencer à Família Bagos d’Ouro, porque, realmente, somos mesmo uma família. E eles, mesmo longe, estão perto. Conseguem ter esse elo com as famílias que apoiam”, acrescenta. “A Bagos d’ Ouro é mesmo um anjo que nos caiu do céu”, diz.

O computador do João, o filho mais velho de Andreia, foi a primeira oferta da Bagos d’Ouro. Já foi há uns anos e já não responde às necessidades.

“Nesta situação, em que temos que trabalhar com a plataforma Teams, estamos a trabalhar os dois, a partir dos telemóveis, porque o computador já não dá para instalar o programa, mas a Bagos está a tentar arranjar uma maneira de resolver a situação e o menino poder trabalhar através do computador”, conta Andreia.

A Elsa Margarida, a filha mais nova, está a trabalhar a partir do telemóvel da mãe. “A plataforma para a menina está a funcionar. A professora meteu uma escala semanal e no dia de hoje esteve a fazer exercícios de Português, exercícios de matemática e exercícios de Estudo do Meio. Eu tirei fotos aos trabalhos que a professora mandou fazer e enviei para o grupo do Facebook”, conta.

Andreia dos Santos é auxiliar de apoio ao idoso. Está sem trabalhar há quase um ano, devido a problemas na cervical, recebe um pequeno subsídio de doença. O marido trabalha na agricultura, à jeira, mas como os patrões de 84 e 86 anos fazem parte do grupo de risco, têm receio de contrair o vírus e, por esse motivo, não tem tido trabalho.

“Estamos os dois em casa, por um infortúnio, para dar mais apoio aos meninos e ajudá-los a passar um bocadinho melhor o tempo”, esclarece Andreia, que conta com o apoio da Bagos d’Ouro e também da Cruz Vermelha para fazer face às dificuldades.

“Sarilhos do Amarelo” na ajuda ao estudo

Também a Maria José, faltam as palavras para descrever a importância da associação na vida da sua família. Com dois gémeos de oito anos, o Tomás e o Salvador, esta mãe considera que o apoio “é essencial na vida da família”.

“A associação está a ajudar a minha família, ajuda os meus filhos com material escolar e apoia-os nos estudos e eles estão muito mais ativos”, descreve à Renascença.

Em tempo de crise pandémica, esse apoio, sobretudo ao nível emocional e incentivo ao estudo, “é feito semanalmente, através de videochamada”.

“Neste momento, estão a trabalhar num projeto que se chama Sarilhos do Amarelo, que é um método para os ajudar e incentivar ao estudo. Todas as semanas a orientadora, a Lara, faz-nos uma videochamada para fazer a sessão, a hora do Sarabico, que é do Sarilhos do Amarelo, para estar em contacto sempre com a família”, conta.

O Salvador e o Tomás ainda não têm computador porque a situação económica da família não o permite. “O computador era mesmo muito importante e mais agora, com os novos métodos do estudo”, desabafa, contando que é por telemóvel que os filhos têm acesso aos trabalhos enviados pela professora.

“Depois de feitos, eu envio por fotografia, mas era muito bem-vindo um computador, mesmo para as pesquisas na internet era essencial e acredito que a associação vai fazer de tudo para nos conseguir um”, afirma Maria José.

Mais bocas a comer

Maria José trabalha por conta própria na área da geriatria. Presta serviço em duas casas, a dois casais de idosos de quem cuida, levanta, faz o almoço e a limpeza das casas.

“Estou lá toda a manhã e depois vou duas horas à noite, deitá-los”, conta, acrescentando que, como o marido trabalha na lavoura, as crianças ficam com a avó. A situação começa a complicar-se, porque agora “são cinco bocas a comer”.

“O meu marido só vive do campo, tem um patrão fixo e eu trabalho nestas duas casas, mas somos cinco. Quando havia escola, eles comiam na escola, em casa era só uma refeição e agora é o almoço e o jantar para cinco pessoas”, detalha.

Também a nível emocional não está a ser fácil. As crianças começam a ficar saturadas de estar em casa, apesar de terem a possibilidade de brincar no pátio.

“É muito complicado porque, com estes dias de chuva, não podem ir para fora, estão fartos de estar fechados em casa. Eles já têm oito anos, entendem que há este vírus e não podem, mas, mesmo assim, saturam e questionam-se porque não podem ir ao parque, não podem ir à madrinha”, conclui.

“Desigualdades agudizam-se” em tempos de pandemia

Criada em 2010, a Associação Bagos d’Ouro “trabalha com crianças e jovens em situação de carência económica e vulnerabilidade social da região do Douro, crianças que têm muitas vezes o seu futuro comprometido, dado as suas dificuldades”, explica a coordenadora social, Mafalda Ferrão.

Neste tempo de pandemia, “estas desigualdades agudizam-se, sentem-se ainda mais”, assinala a responsável.

A Bagos d’Ouro apoia 81 famílias e 166 crianças e jovens, em seis concelhos da região do Douro: S. João da Pesqueira, Tabuaço e Armamar, no distrito de Viseu, Alijó, Murça e Sabrosa, no distrito de Vila Real.

E se o papel da Bagos d’Ouro já era ajudar as crianças e jovens, retirando as barreiras e as dificuldades ao nível educativo e ao nível de vida social, ajudando a criar oportunidades, agora, em tempo de pandemia, ainda mais. E essa tem sido a missão, “reforçar este apoio”.

Computador e internet nem que seja preciso pôr o router no telhado

Com o encerramento físico das escolas, as atividades passaram para o ‘online’. A associação ajudou a colmatar a falta de equipamentos e acesso à Internet, através da angariação de computadores e da instalação de serviços de telecomunicações.

“As nossas crianças não tinham internet e esta foi logo a nossa primeira preocupação – por todas as crianças online, digamos assim, e depois responder também às dificuldades de computador”, conta à Renascença Mafalda Ferrão, acrescentando que “hoje todas as crianças conseguem comunicar por telemóvel, mas 46% das crianças apoiadas pela Associação não têm computador”.

“Estamos a fazer uma angariação de fundos através de um ‘crowdfunding’ também de pessoas e empresas que nos têm ajudado, para arranjarmos estes computadores, para que estas crianças consigam entrar em contacto com os seus professores, com os seus colegas, através das chamadas que vão complementar a telescola, agora no terceiro período”, revela a coordenadora social da associação.

A Bagos d’Ouro instalou Internet na casa de 11 crianças e jovens que vivem em aldeias isoladas e “muitas vezes foi necessário colocar o router em sítios muito criativos, como o telhado ou a casa de banho”, conta Mafalda Ferrão.

“Estes meios digitais são um apoio, poderão ser uma mais valia muito grande para crianças com bom desempenho, mas também para as crianças com insucesso, ou mais dificuldade, podem não ser uma boa ferramenta”, assinala a responsável, assumindo o desafio da coordenação com os professores e com as famílias, para que o terceiro período seja o mais eficaz possível.

“Vai-se notando alguma irritabilidade e instabilidade”

Esbatida a barreira do isolamento digital, a atenção da associação centra-se agora na estabilidade emocional das famílias. Para isso está também a intensificar os contactos e envolver mais as famílias através de videochamadas.

“À medida que o tempo avança, em casa, as dificuldades também vão aumentando. Vai-se notando alguma irritabilidade, alguma instabilidade, que se não é muito visível em famílias mais estáveis, nestas mais vulneráveis, por vezes vão-se revelando mais”, assinala Mafalda Ferrão.

“Queremos que sintam na Bagos d’ Ouro um canal aberto para poderem ir desabafando e encontrando aqui um canal de resposta às suas dificuldades. Também com as crianças, estamos a desenvolver um programa, sobretudo com os mais novos, para esta regulação emocional, para ultrapassarem da melhor maneira possível este desafio que todos vivemos”.

Na rede social Facebook, foi criado um grupo onde são colocados desafios para os filhos e os pais fazerem juntos, desde exercício físico à leitura.

As questões sociais também preocupam a Bagos d’Ouro até porque, segundo Mafalda Ferrão, já há famílias com situações de desemprego à vista.

“Sabemos que n Douro, ao nível do emprego, o trismo é uma das principais áreas. A agricultura mantém-se, mas o turismo e empregos relacionados com o turismo acabam por entrar agora em situação de desemprego”, observa a responsável, frisando que a associação “não dá ajuda financeira”, mas procura sempre encontrar, nos seus parceiros, na rede local e com a Segurança Social, as ajudas, para que as famílias consigam responder às suas necessidades.

“Só os largamos quando estiverem inseridos no mercado”

“O anjo que caiu do céu”, no dizer de Andreia dos Santos, beneficiária da associação, vai continuar presente na busca de soluções para as crianças e jovens carenciados da região duriense.

“É um compromisso a longo prazo”, assegura Mafalda Ferrão, esclarecendo que a associação identifica crianças “com o apoio das escolas, logo no primeiro ano escolar e, depois, a Bagos d’Ouro apoia estas crianças até à integração na vida ativa, quer seja um percurso universitário, quer seja um percurso profissional”.

“Só os largamos quando estiverem integrados no mercado de trabalho e com um caminho que se vislumbre de sucesso. Esta é a nossa missão”, conclui a coordenadora social.

A Bagos d’Ouro trabalha no terreno com uma equipa de 45 voluntários dispersos por diversas áreas, entre os quais seis psicólogos, um por concelho e cada um gere entre 13 e 14 famílias. Com cada família, cada um dos gestores vai encontrando a solução para os seus problemas.