Entrar na China não foi o mais complicado. Foi através de Macau e a obtenção de visto até foi fácil, mas apenas porque a verdadeira intenção da viagem não foi revelada. “Os motivos que oficialmente apresentávamos para a obtenção de vistos era estudante, ou homens de negócios, tudo menos padres, isso nós sabíamos automaticamente que seria imediatamente recusado.”
O padre português, membro de uma congregação missionária, pede para não ser identificado, pois alguns dos seus colegas continuam no país. Entrou como estudante e, de facto, matriculou-se na universidade. Nunca foi assediado pelas autoridades, mas tem poucas dúvidas de que alguns sabiam bem qual era a sua intenção na China.
“Não faltávamos às aulas, éramos alunos aplicados, tanto mais que, de vez em quando, tivemos visitas da polícia às nossas casas, a perguntar o que é que estávamos a fazer. Numa das vezes, chegaram mesmo entrar. Tomámos isso como normal. Estávamos, de facto, a estudar, não havia nenhum objeto assim que chamasse extraordinariamente a atenção. Havia uma cruz na sala, havia um ou outro quadro religioso, mas não 'pegaram' nada disso”, explica.
Outras vezes as “visitas” da polícia aconteciam quando não estavam em casa. “Nos primeiros seis meses, ficávamos no dormitório e no meu quarto, pelo menos duas ou três vezes, entraram e revistaram.”
O material litúrgico era bem escondido, nunca foi descoberto, nem o padre se deixou levar pelas armadilhas. “Nos serviços de emigração às vezes perguntavam: 'E a sua esposa o que é que acha de estar aqui há tanto tempo na China?’ Eu respondia, ‘ela não tem nada a dizer, desde que eu aprenda bem a língua ela não se chateia’. Lançavam o laço, para ver se nós caíamos. Mas eu tenho a certeza que sabiam, sempre souberam, que nós éramos padres. Não só eu como os outros meus colegas”, diz.
“O resto não é contigo”
A Igreja Católica na China encontra-se dividida entre uma comunidade fiel a Roma, a chamada igreja clandestina, e outra controlada pelo Governo, sob a égide da Associação Patriótica. É assim no papel e é assim no terreno, em algumas zonas, mas noutras as divisões não são assim tão claras e os católicos “clandestinos” são tolerados desde que não levantem ondas. Foi nesse sentido que o padre português recebeu um aviso de um sacerdote chinês, mal chegou ao país.
“Uma coisa é o que eu posso fazer enquanto padre, dando assistência religiosa e espiritual à população, outra coisa é começar a falar de algo que não me diz respeito. Questões como Taiwan, Hong Kong ou Macau não me dizem respeito, que não sou chinês; questões sobre como é gerida a política na China, não me dizem respeito, que não sou chinês. Ele disse mesmo assim, muito francamente e muito honestamente, e de forma amiga: ‘Vens cá, tudo o que nós podemos fazer por ti, tudo o que tu puderes fazer por nós, neste aspecto religioso e espiritual, por favor faz. O resto não é contigo, tu não tens que conversar sobre isso’”, recorda.
Assim fez, e assim chegou a celebrar missas e orientar retiros de forma pública. “Celebrava todos os meses em inglês, numa igreja de portas abertas, sem nenhum problema. Primeiro tive algum receio, mas uma vez um padre chinês disse-me ‘não temas, porque nunca na vida a polícia ia entrar por uma celebração a dentro, havendo lá estrangeiros e com a possibilidade de enviarem fotografias ou imagens para fora da China, prender-te ou fazer-te mal. Isso nunca te vai acontecer’. E de facto não aconteceu, celebrei e a minha fotografia até apareceu no jornal da paróquia.”
Mas enquanto explica que na zona onde se encontrava não havia grandes dificuldades, reconhece que noutras partes do país não era tão simples. “Em Xinjian, por exemplo, ainda bem recentemente algumas igrejas foram totalmente descaracterizadas, cruzes removidas, santos retirados da fachada”, e há ainda vários bispos leais a Roma detidos.
Numa altura em que se multiplicam os boatos de um acordo iminente entre Pequim e Roma que regularizaria a situação da Igreja naquele país, a discurso tende a abordar a realidade no terreno como sendo a preto e branco, com católicos leais a Roma de um lado – os bons – e católicos leais ao Governo do outro – os maus da fita. O padre insiste que num país desta dimensão não é possível fazer generalizações. “A China é tão grande que não podemos dizer que a China é assim, ou a Igreja na China é assado. Há locais onde de facto as duas comunidades trabalham, há locais em que as duas comunidades não se podem ver e há locais em que não existem duas comunidades, só existe uma igreja”, conclui.
Calcula-se que haja mais de 10 milhões de católicos na China, mas o número real pode ser superior. Há ainda muitas comunidades protestantes, que pela sua natureza são ainda mais difíceis de controlar.