“Retratos Desconhecidos” é a nova campanha da Alzheimer Portugal que já se pode ver na televisão, online e nas redes sociais, com um vídeo que, ao primeiro olhar, pode chocar. E é mesmo esse o objetivo, admite à Renascença Catarina Alvarez, responsável das relações institucionais da associação.
“É mesmo preciso abanar a sociedade”, sublinha. O objetivo é despertar as pessoas para o facto de a demência poder entrar na vida de qualquer um, de uma forma silenciosa, de um dia para o outro.
Trata-se de um convite a uma reflexão e um desafio a que todos façam os possíveis para ter uma vida mais saudável e reduzam os fatores de risco modificáveis que potenciam as demências.
Vários estudos científicos apontam para o aumento do número de casos, aliado ao envelhecimento da população. Em 2019, eram 57,4 milhões em todo o mundo, mas em 2050 poderão ser cerca de 152 milhões. Ou seja, um crescimento de 2,7 vezes em três décadas. No mesmo período, Portugal pode passar dos 200 mil casos para mais de 350 mil.
É preciso abanar a sociedade
Uma manhã, uma mulher jovem pega na sua bicicleta e sai para o trabalho. Pouco depois, uma equipa “assalta” a casa, tira as molduras que tem em cima da mesa e nas paredes e substitui as fotografias da família e amigos. Volta a colocar tudo no mesmo sítio. Quando regressa a casa, a mulher, extenuada, deixa-se cair no sofá. O primeiro olhar vai para a moldura em cima da mesa, com uma foto de família em que o seu rosto é o único que não foi alterado na “operação”. A dúvida instala-se e acentua-se quando se levanta e vê as mesmas personagens nos retratos da parede.
“Nunca imaginamos esquecer aqueles que para nós são inesquecíveis” é o slogan da nova campanha da Alzheimer Portugal.
A responsável das relações institucionais da "Alzheimer Portugal" diz que se pretende que esta campanha seja uma espécie de ”despertar”, “chamada de atenção”, especialmente para aqueles que ainda não passaram pela experiência de conviver ou de cuidar de uma pessoa com demência. “Ainda não tiveram oportunidade de pensar nisto, acreditam que esta é uma realidade distante e no fundo, pode acontecer a qualquer um, de um dia para o outro”.
“Com este vídeo e esta campanha, queremos que as pessoas imaginem que um dia podem vir a esquecer-se daqueles que sempre fizeram parte da sua vida e deixar de reconhecer mesmo os familiares mais próximos, os amigos, a própria casa. No fundo é, utilizando uma metáfora poderosa, chamar a atenção para o facto de uma demência poder entrar na vida de cada um de forma silenciosa, quase impercetível”. Catarina Alvarez admite que o vídeo pode ser “chocante”, mas argumenta que às vezes, é mesmo preciso abanar a sociedade. “É um convite à reflexão."
O facto de a protagonista ser uma mulher jovem também não é um acaso: “Tinha que ser, sem dúvida." Por um lado, porque as mulheres são as mais afetadas pela demência; por outro, para chamar a atenção das pessoas mais novas de que, hoje em dia, é possível reduzir o risco de desenvolver demência porque já se conhecem os fatores de riscos modificáveis e as estratégias a implementar ao longo de vida.
“É preciso apostar na prevenção, em termos de saúde pública, mas também depende de cada um de nós e dos nossos comportamentos”, sublinha a responsável da Alzheimer Portugal.
Doze fatores de risco modificáveis para controlar
Num artigo recente, a revista científica Lancet, aponta para a continuação do aumento do número de casos de demência em todo o mundo. Em 2019, as estimativas apontavam para cerca de 57,4 milhões de casos, mas daqui a três décadas, em 2050, poderão ser mais de 152 milhões. Em relação a Portugal, dos atuais 200 mil casos, pode-se evoluir para mais de 350 mil. Hoje em dia, as demências afetam mais significativamente as mulheres e tudo indica que a tendência vai manter-se.
Uma doença que está ligada ao envelhecimento, mas não só. Por isso, o estudo da Lancet aponta doze fatores de risco modificáveis: depressão, isolamento; sedentarismo; tabagismo; consumo excessivo de álcool; perda de audição; obesidade; diabetes; hipertensão; baixos níveis de escolaridade; traumatismo crânio-encefálico e poluição atmosférica.
Catarina Alvarez admite que são muitos, mas, basicamente, assentam em dois pilares: a adoção de uma vida saudável para combater vários destes fatores de risco e ao mesmo tempo, privilegiar estratégias de estímulo social e intelectual. O investimento na aprendizagem, desde a infância e ao longo da vida reduzem o risco de desenvolver demência.
Crescimento das demências exige políticas públicas de saúde
Não há alternativa: o crescimento do número de pessoas com demência exige que os países intensifiquem os esforços para adotar políticas públicas de saúde e que assumam o combate à doença como uma prioridade. Com o artigo publicado no início do ano na Lancet, que inclui a situação de cada país em 2019 e a previsão para 2050, os investigadores pretendem fornecer informação adicional que os decisores nacionais podem usar na definição de estratégias. Defendem abordagens diversas, incluindo maior intervenção para controlar os fatores de risco, assim como o investimento na investigação.
Portugal tem uma Estratégia de Saúde para a Área das Demências aprovada desde 2018, que prevê um Plano Nacional da Saúde para as Demências, constituído por cinco Planos Regionais, um por cada ARS. Mas foi só no fim do ano passado que a Ministra da Saúde os aprovou e poderão começar a ser implementados.
A Alzheimer Portugal é uma das entidades que integram a Comissão Executiva do Plano Nacional da Saúde para as Demências, liderada por António Leuschner. Depois de tanto tempo à espera, Catarina Alvarez considera que a aprovação dos Planos Regionais “é uma espécie de esperança renovada para que o próximo governo dê continuidade ao processo e os planos passem para o terreno. Que aliás, é uma medida que consta do Plano relativo à Saúde Mental, que faz parte do PRR (Plano de Resolução e Resiliência). Não queremos que seja dado algum passo atrás”.
É que se a situação já era delicada antes da pandemia de Covid-19, nestes dois anos, agravou-se.
A responsável da Alzheimer Portugal afirma que ainda não há dados concretos sobre os efeitos da COVID nas pessoas com demência em Portugal. Mas remete para a literatura internacional que frisa as particulares vulnerabilidades das pessoas com demência e cuidadores em tempo de pandemia, nomeadamente no percurso mais acelerado de deterioração cognitiva funcional, devido ao isolamento a que foram sujeitos.
“Constatámos isso aqui (Alzheimer Portugal) nestes dois anos, à medida que as pessoas nos iam ligando e pedindo ajuda. E em relação aos cuidadores informais também: não só as pessoas com demência estiveram muito isoladas como os próprios cuidadores tiveram que aumentar o número de horas de cuidados porque os centros de dia – mesmo não tendo as melhores condições para acolher estas pessoas – são uma válvula de escape, que dão umas horas de descanso aos cuidadores. Se a questão já antes era urgente, a pandemia é um argumento para que as demências sejam uma prioridade nas políticas públicas de saúde”, conclui Catarina Alvarez.