Natural da Madeira, o bispo de Setúbal acompanha com preocupação a situação na Venezuela. Visitou o país algumas vezes, quando foi Provincial Geral dos Missionários Dehonianos, e tem ligações familiares que não o deixam distrair-se da atual crise.
D. José Ornelas não sabe dizer se o governo português fez bem em reconhecer a legitimidade a Juan Guaidó para assumir a presidência do país até haver eleições. Crítico do regime, que destruiu a capacidade produtiva do país, diz que a comunidade internacional pode ajudar a encontrar uma saída, mas não a escolher sucessores. O que tem a certeza é que, seja qual fôr a solução para o país, terá de ter sempre a “concordância dos militares”.
A atualidade informativa tem passado por estes dias pela Venezuela. É um país onde já esteve quando foi Superior Geral dos Missionários Dehonianos, e a que também tem ligações, por ser madeirense, tem lá família. Como é que tem seguido as notícias da instabilidade que se vive no país?
Com grande preocupação desde há muito, porque eu visitei a Venezuela como Superior Geral dos Dehonianos várias vezes, vi o surgir e o evoluir desta situação, e acho que foi-se criando uma situação com elementos de que hoje se veem as consequências.
E que desfecho prevê?
Gostaria de prever e sonhar um desfecho pacífico, mas que ao mesmo tempo resolva os problemas, porque há muito tempo que se vem falando de soluções, sucessivas eleições, mas, enquanto não mudar o sistema, não dá.
Portugal fez bem em reconhecer a legitimidade de Juan Guaidó em assumir a presidência interinamente, até haver um processo eleitoral?
Olhe, não sei. É uma pergunta que faço a mim mesmo, se é o caminho melhor. Certamente é preciso exercer uma pressão internacional sobre esta situação e sobre o atual governo, que foi criando as condições do conflito que agora se verifica de uma forma... bem, eu assemelho-a a muitos dos populismos que hoje nos causam tantos problemas em tantos quadrantes do mundo. Porque querer soluções fáceis, acusando simplesmente parte do sistema, não funciona. Ali o que aconteceu claramente foi que foram-se atacando sistematicamente as fontes produtivas da Venezuela. A nacionalização do sistema produtivo agrícola, por exemplo, o sistema de auto-sustentação da própria Venezuela, para não repousar apenas do petróleo, esse sistema produtivo foi completamente desmantelado, em nome de ir à procura dos exploradores do povo, e o resultado foi este, é a fome que agora se vive, faltam produtos que a Venezuela tem toda a capacidade de produzir a nível agrícola, e a outro nível. Agora, o que acho que é significativo é que se diga que este governo não está resolvendo os problemas da Venezuela, absolutamente não está, que é preciso haver mudanças radicais. É preciso. Penso que não nos compete a nós indicar quem é o sucessor. Temos de dizer, isso sim, da parte da União Europeia, a que Portugal está intimamente ligado, é que devem ter lugar eleições livres, que possam ser controladas, para que a população se possa realmente sentir identificada com quem os governa. Neste momento é uma empolação completa da situação. Aí os militares vão jogar um papel determinante. Em muitas partes do mundo os militares têm uma noção mais realista do que muitos dos governantes sobre a situação, e eu espero que aqui possam ter um papel ponderado, não de uma ditadura militar, mas algo do género da nossa revolução dos cravos, que possa dizer se há que utilizar a força. A força tem de ser para defender o direito e a justiça, que neste momento falta na Venezuela.
Em relação aos militares ainda não se percebeu muito bem, no caso da Venezuela, como vai ser. Mas, pode ser esse o caminho para se conseguirem eleições livres, através dos militares?
Sem, pelo menos, a concordância dos militares vai ser difícil, porque o pior é que estão se disseminando armas por todo o povo, por toda a Venezuela, o que já não é nada de recente, isso já vem do passado, e isso é que acabará por ter consequências graves.
Temos de falar também na crise social e na pobreza na Venezuela, e nas ajudas internacionais que é possível fazer chegar, ou não. Aí há dificuldades, até ao nível diplomático.
A todo o nível. A televisão neste aspeto tem transmitido situações concretas de famílias, sobretudo de pessoas que têm doenças, ou que precisam de um tratamento especial…
O problema é fazer lá chegar medicamentos e bens?
Aí entra a comunidade internacional, que não faça sanções e obstáculos, pretendendo condicionar o governo venezuelano a mudanças, que acabem por penalizar ainda mais uma população que já está no extremo da sobrevivência em muitos lugares.
Agora, acho que é importante que haja uma mobilização. A nossa diocese (Setúbal) já instituiu como uma das finalidades da renúncia de Quaresma precisamente a ajuda à situação da Venezuela. Vamos procurar fazê-lo através dos canais eclesiásticos, da Igreja, de tal maneira que se assegure que aquilo que damos chegue, de facto, à população e não seja desviado pelo caminho, o que acontece tantas vezes às ajudas oficiais.
No terreno, na Venezuela, as próprias instituições sociais da igreja estão a tentar organizar-se, para ver como é que essa ajuda que chega do exterior pode ser distribuída.
Exatamente. Nós privilegiaremos essa organização da Igreja no local, porque é aquela que nos parece mais segura.
O êxodo dos venezuelanos não está a gerar problemas também nos países onde estão a chegar, nomeadamente a Portugal e à Madeira?
Olhe, eu não sei. Eu até tenho visto coisas interessantes. Eu convivi com imigrantes portugueses em todo lado, veja o que aconteceu por exemplo com os nossos retornados, e foi uma dimensão sem comparação com aquilo que está agora. E os retornados foram um motor de desenvolvimento de tantas coisas em Portugal.
São esses os ecos que lhe chegam da Madeira também?
Na Madeira é um ambiente mais pequeno, é complicado, porque já tem as suas dificuldades, mas não quer dizer que tenham de ficar na Madeira, esta gente já está habituada a horizontes mais amplos. Era importante é que num país que tem tanta falta de natalidade, que estes que ainda são verdadeiramente ligados, ou a primeira geração, nascidos fora, mas ligados ao nosso país, que possam ser devidamente enquadrados para darem um contributo, e sentirem-se assim parte integrante de um processo de desenvolvimento, e não um peso a obstaculá-lo.