As últimas eleições registaram um peso muito significativo de apoio a partidos antissistema, o que deve ser interpretado como um voto de protesto. Mais de um milhão de eleitores, elegendo mais de 21% dos deputados, disseram que pretendiam mudar de regime. Isso é superior a todas as eleições desta democracia, incluindo os tempos revolucionários.
Não é difícil compreender por que as pessoas protestam. Todos temos substanciais razões de queixa acerca da nossa vida e do rumo do país. O aspeto relevante está, porém, não nas queixas, mas no que fazemos com elas. Alguns esforçam-se por melhorar a situação; outros limitam-se a acusar terceiros. E hoje o número de acusadores é o maior de sempre.
Será que estamos pior do que em qualquer outra época dos últimos 50 anos? Claro que não! Mas os votos de protesto, em geral, pouco ou nada têm a ver com a realidade das coisas. Trata-se, não de um juízo sobre aquilo que é, mas de uma exigência acerca do que devia ser. Assim, o fenómeno passa-se fundamentalmente no reino do desejo, do anseio, da ficção. Isso também explica por que, normalmente, não são aqueles que mais sofrem e mais necessitam que mais protestam. Os pobres costumam ter pouco tempo para ralhar.
O segundo elemento essencial do voto de protesto é que ele é eminentemente negativo. Não trata as questões, não resolve problemas, não melhora a situação. Em geral, limita-se a descarregar os nervos e a tornar tudo pior. É verdade que votar em protesto é bastante mais civilizado do que atirar tinta aos transeuntes, como nas recentes manifestações ambientalistas; mas, no essencial, expressa a mesma arrogância e preguiça intelectuais. Deixa só tudo sujo, sem vantagens para ninguém. Quem protesta enfurecido não consegue analisar as dificuldades, descrever o que pretende ou sequer propor soluções. Limita-se a resmungar e a apontar culpados. Só que, como não existe por trás nenhum estudo cuidadoso da situação, esses acusados pouco ou nada têm a ver com as reais dificuldades. O protesto vive sempre no mundo da fantasia.
As recentes eleições são uma prova evidente disto. Com a tomada de posição tão firme do passado dia 10 de março, o único resultado relevante é que o país ficou ingovernável. Isso só fará subir as razões de queixa, aumentando os protestos, começando a espiral de decadência. Portugal só agora iniciou a descida desta escada da ignomínia, mas pode ver os estádios seguintes em França, EUA ou Brasil, e o fundo do buraco na Venezuela, Líbia e Haiti.
Claro que quem vota em partidos antissistema julga sempre que o seu escolhido fará toda a diferença, ilusão que a retórica se encarrega de confirmar. Mas é evidente que uma força do “contra” nunca poderá pertencer a um governo, sem perder a principal qualidade que a define. Esse é o drama central do movimento de protesto: só se mantém como tal enquanto for irrelevante. No dia em que lidar realmente com os assuntos, quando começar a fazer contas, a enfrentar desafios, a gerir compromissos, torna-se tão odioso para os seus apoiantes como os partidos de poder.
Portugal teve, aliás, recentemente um exemplo disso mesmo. Durante os primeiros 40 anos desta democracia, o voto de protesto era exclusivamente na extrema-esquerda. Isso foi assim até outubro de 2015, quando o primeiro-ministro António Costa conseguiu angariar o apoio dessas forças para o seu executivo. Foi um golpe de génio político, que assegurou oito anos de poder ao PS, mas com dois efeitos laterais. Primeiro, integrando a extrema-esquerda no regime, eliminou-a como força de desacordo. Assim, dos 34 deputados que elegeu no dia da “geringonça” (19 do Bloco e 15 da CDU), ela desceu para 9 há poucos dias (5 e 4). O segundo efeito foi, naturalmente, gerar três anos depois uma nova força de protesto, o Chega em 2019, alegadamente do lado oposto do espectro, que acaba de eleger 50 deputados.
Mas não será verdade que aquilo que aconteceu nas eleições portuguesas é mero reflexo de um processo muito mais vasto, a subida do extremismo que se verifica ultimamente por todo o Ocidente? Sim, é provável, o que apenas confirma a velha tradição lusitana de fazer cópias atrasadas e grosseiras dos disparates estrangeiros. No entanto, até essa tendência continental de pender para o extremismo reforça precisamente o que foi dito.
Vivemos um dos tempos mais prósperos da história da humanidade. As novidades e os avanços nos campos digital, energético, médico, financeiro, geoestratégico, entre outros, estão entre os mais notáveis e promissores que alguma vez se viram. Só que isso causa incerteza, desigualdade, insegurança, instabilidade, todos vivendo em ambientes e perspetivas nunca dantes experimentados. Os ganhos são já evidentes, mas os riscos não são menores. Acima de tudo, a complexidade dos problemas é suprema.
Por isso, em tempo de alvoroço sempre sobem aqueles que vendem diagnósticos simplistas e explicações banais. É psicologicamente muito reconfortante poder atribuir tudo o que nos confunde a um punhado de vilões. Por isso é que todas as eras de ouro da humanidade foram sempre férteis em demagogos, fazendo muito barulho sem realmente compreender aquilo que se passa.
A última vez que o Ocidente viveu um caso destes, então protagonizado por Mussolini, Estaline e Hitler, resultou a maior destruição da humanidade e demorou muitas décadas a recompor. Esperemos que aquele que estamos a viver, protagonizado por Putin, Le Pen e Trump não chegue a tais extremos. O principal elemento a reter é que, em qualquer um destes seis casos, como nas nossas eleições de 10 de março, tudo começou com um movimento de protesto. Um compreensível, irritado, ocioso e irresponsável movimento de protesto.
João César das Neves, Professor da Católica Lisbon Business School & Economics.
Este espaço de opinião é uma colaboração entre a Renascença e a Católica-Lisbon School of Business and Economics.