Independência da Catalunha. Já não é o "quê", mas sim o "como"
03-10-2015 - 01:07
 • José Bastos

A Renascença falou com um analista político e com uma independentista da Catalunha poucos dias depois das eleições na região. Anna Arqué: “Em Madrid não entendem a Catalunha”. Manuel Campo Vidal: “Entendimento é possível, desejável e benéfico para todos”.

A disputa que separa Barcelona e Madrid está onde estava antes das eleições regionais de 27 de Setembro: sem vencedores, sem vencidos. Mais importante: sem acordo à vista com Madrid. Independentistas controlam parlamento regional, mas falham maioria de votos. O novo governo regional depende agora de uma lista de protesto (CUP).

Vão ser as legislativas de Dezembro, agendadas por Mariano Rajoy, a alterar o equilíbrio de forças políticas na capital (PP vs PSOE, Ciudanos vs Podemos) e influenciar a relação com a Catalunha?

“Independentistas vencem regionais, mas não o seu plebiscito”, titulava o ‘espanholista’ “El Pais”. “Adiós Espãna”, respondia a manchete do “Punt Avui”.

Quando a origem condiciona a grelha de análise, a Renascença juntou Madrid e Barcelona. Em Madrid, Manuel Campo Vidal, um dos mais conhecidos analistas políticos do país. O ‘Mister Tv’ de Espanha. Moderou o primeiro frente a frente da televisão espanhola Aznar-Gonzalez, em 1993. Repetiu com Zapatero-Rajoy, em 2008, e Rubalcaba-Rajoy, em 2011. Desde Barcelona, Anna Arqué, o rosto mais conhecido internacionalmente da nova corrente independentista catalã. É especialista em estratégias de comunicação e responsável da Comissão Internacional de Cidadãos Europeus.

Está o diferendo num beco sem saída ou a 20 de Dezembro pode ter um novo desenho?

Anna Arqué: O referendo de auto determinação da Catalunha parece estar num beco sem saída devido à concepção que o governo central em Madrid parece ter da democracia e não do poder da razão. Aqui, a partir da Catalunha, o referendo é pedido por 80% dos cidadãos. Querem poder perguntar democraticamente se queremos ou não a independência.

Há um ano o Tribunal Constitucional disse que não era constitucional que os catalães pudessem opinar nas urnas sobre o seu futuro. Nas eleições de domingo o povo – esse protagonista indispensável das alterações históricas – decidiu que haja um parlamento com uma maioria absoluta de deputados a favor da independência. Será um governo independentista que tornará efectiva essa independência. A 20 de Dezembro as urnas – nesta concepção actual do modelo de estado – irão também falar. Já veremos a opinião de cada partido como, a partir de Espanha, querem acompanhar este processo de independência catalão que, de resto, já se tinha iniciado no parlamento catalão.

A 20 de Dezembro não vai começar nada novo. Os partidos têm em mãos decidir se querem acompanhar este processo democrático ou se o que preferem é explicar á comunidade internacional que problema têm com a democracia e com os referendos.

Madrid e Barcelona reclamam vitória. Não há um ponto intermédio para o diálogo?

Manuel Campo Vidal: Esse ponto existe. Há muitas pessoas que estão nesse ponto intermédio. Eu próprio estou aí nessa posição que tenta privilegiar o diálogo. Creio que há um ponto intermédio para dialogar e negociar. A posição – respeitável – do nacionalismo catalão está a realimentar a posição, muito fechada, do nacionalismo espanhol que, por sua vez, realimenta a posição do nacionalismo catalão. É como um arco voltaico, um arco eléctrico. Há na Catalunha e no resto de Espanha muitíssimas pessoas desejando encontrar uma via de negociação, desejando encontrar um acordo.

Há então que esperar por 20 de Dezembro para obter um mapa político diferente a recuperar um novo consenso constitucional?

Manuel Campo Vidal: Sim. Seria bom um quadro em que as eleições pudessem levar a uma mudança de interlocutor ou até que, mantendo o mesmo partido, possa alterar o interlocutor.

Assinalo que está a ser difícil constituir governo na Catalunha, na sequência das eleições de domingo e creio que, depois do dia 20 de Dezembro, também não será fácil formar um governo em Madrid. Mas, mais mês menos mês, a Catalunha terá um governo e em Madrid estará um outro. Esses dois governos terão de sentar-se à mesma mesa e encontrar uma saída. Porque alcançar um acordo é o que está a pedir uma maioria na Catalunha e em Espanha.

A acusação a Artur Más é um erro de Madrid? ‘Judicializar’ o que muitos dizem ser um conflito político?

Anna Arqué: Em Madrid repetem-se erros, porque não conseguem entender o movimento de fundo sobre o qual se edifica o independentismo catalão. Teriam de perceber que de cada vez que no parlamento da Catalunha se aprova uma lei como a do referendo - e em Madrid a levam ao Tribunal Constitucional – existe, por detrás, um trabalho consensual que se funda no mundo associativo e social. Em Madrid acha-se que cada vez que uma lei é suspensa é mais uma batalha ganha por Rajoy. O prisma de análise parte sempre de uma grelha constitucional, porque não têm a concepção clara – não conseguem perceber o fundamento. Porque o diálogo a que se apela Manuel Campo Vidal é muito curioso. É um apelo que surge sempre quando o independentismo está forte, claro ou está a despontar. Então, de repente, em Espanha, nesse momento, sempre se lembram do diálogo, sempre se lembram da federação. É um cenário que se repete em laço. A questão não é de soluções de última hora. Os catalães já se pronunciaram. No Parlamento há uma maioria de deputados independentistas. Agora já não falamos do “quê”, mas sim do “como”.

Para esse “como” vai ser muito importante que se entenda a idiossincrasia catalã. Ao estado espanhol falta esse grau de entendimento. Por isso os seus agentes acreditam que com um processo judicial a Artur Más travam uma batalha entre ele e as instituições em Madrid. Não é assim. Eu mesma, por exemplo, desenvolvia acções no âmbito da lei de acção exterior da Catalunha e quando desde Madrid a lei é anulada não se proíbe a actividade a Anna Arqué, mas a 320 associações, entre as quais o Conselho da Mulher com mais 400 associações, que trabalharam duramente dois anos. É a esses milhares de pessoas que, de certa maneira, se insulta desde Madrid. É isso que o estado espanhol não entende porque a sua concepção das relações de poder é diferente.

O ‘espanholismo’ terá de adoptar formas mais atraentes para a cidadania catalã?

Manuel Campo Vidal: Não creio que seja uma questão de Catalunha vs Espanha. Há duas Catalunhas claramente divididas. A Catalunha está dividida pela metade. É igual que sejam 47% ou 53%. Por outro lado a Espanha não é homogénea. Em Espanha há posições que me parecem erradas. Por exemplo na acusação judicial a Artur Más e em outras decisões que se tomaram. E quando se diz “Madrid acredita”. Não. Madrid não acredita. Neste momento há é um sector no governo que assume essas posições. São posições que não decorrem exactamente do que pensa a imensa maioria dos espanhóis, de todas as pessoas da geografia espanhola. São pessoas que formam um conjunto da sociedade que vem reclamando o diálogo há muito, há muitos meses, não um diálogo de última hora. Aí me incluo. Portanto queremos - e necessitamos - que haja uma sincera disposição para o diálogo sobre o futuro da Catalunha. Já o faço desde os tempos da ditadura de Franco, portanto não sou suspeito de ser contra uma solução. Creio que a falta de diálogo será um mau negócio para cidadãos da Catalunha e para os cidadãos de Espanha. Por isso defendo o entendimento. Sou pelo exercício da razão acções não prevalecentes nos últimos tempos.

Antón Costas presidente do Círculo de Economia da Catalunha, entidade a representar empresários, intelectuais e outras figuras, escreveu, recentemente, no La Vanguardia que se vivem tempos em que faz mais falta coragem para se ser moderado que coragem para se ser radical.

Até onde Madrid pode ser flexível?

Manuel Campo Vidal: Há aspectos da realidade catalã que Madrid deve aceitar e fazer reflectir na Constituição. Pouco a pouco ganha força a ideia de que o texto constitucional espanhol terá de reconhecer que a Catalunha é uma nação. Porque, de facto, o é historicamente. Isso está fora do reconhecimento de algumas forças políticas, mas acredito, com boa vontade, essa batalha deve ser travada e ganha. Mesmo sendo muito difícil tenho a esperança – e trabalho intensamente nesse sentido em todos os sítios onde vou como Portugal – de que se perceba de que o entendimento é possível, é desejável e é benéfico para todos.

Criar um estado é a única opção para uma nação consolidada ou há outras mais vantajosas num mundo globalizado?

Anna Arqué: Mais do que nunca por – justamente - estarmos num mundo globalizado a voz catalã tem de ser ouvida de forma directa. Este é um tempo em que questões muito importantes são debatidas. Questões como tratados comerciais, de soberania alimentar, de soberania energética que são aspectos decisivos da forma como queremos transformar e viver nas nossas sociedades.

Constata-se que sem um estado, a forma de organização que assegura uma voz directa das sociedades nas instituições internacionais, pouco ou nada podemos influenciar. É decisivo poder ter esta voz directa para dizer como queremos viver e discutir que grau de soberania pretendemos ceder a estas instituições supranacionais. Em resumo: que não seja o estado espanhol o interlocutor a representar a voz catalã e a decidir em nosso nome. Porque é na práxis, e não apenas no plano conceptual, que se vê qual é a tendência política na Catalunha e a de Espanha. Aprovamos uma lei anti-fracking que o Tribunal Constitucional suspende porque não é legal.

Aprovamos uma lei anti pobreza energética e Madrid suspende. Não podemos criar uma relação internacional a partir da cosmovisão catalã porque em Madrid, outro povo, outra nação, o proíbe e diz que não é possível que o estejamos a fazer.

A Catalunha acabará por impor um adeus à Espanha?

Manuel Campo Vidal: Creio que não o chegará a fazer. De resto, a última imposição unilateral no cenário internacional foi o Kosovo. Todos sabemos o resultado. Kosovo ficou de fora de todos os organismos internacionais. Um quadro semelhante configuraria um cenário muito triste para a Catalunha. É um cenário que não desejo para a Catalunha e para a Espanha. Antes temos de fazer um esforço de compreensão mútua e de entendimento.

Estou de acordo em que há uma parte de Madrid que não entende a Catalunha, mas também é verdade que uma grande parte dos catalães e espanhóis deseja que Catalunha e Espanha continuem unidas.

Algum dia Madrid irá permitir a independência?

Anna Arqué: Para começar não é uma questão de que ‘nos permitam’, porque a soberania – como bem disse Alex Salmond - não está nem na monarquia, nem nos parlamentos, mas sim no povo. Repito: esse é o grande pilar da concepção do processo independentista catalão. Portanto, não é questão de um estado o poder permitir. É uma questão de justiça e de direitos universais.

Aproveitando o exemplo dado por Manuel Campo Vidal, o Tribunal Internacional de Justiça emitiu um parecer referindo que no caso da contradição entre a legalidade constitucional de um estado e a vontade democrática de um povo deve prevalecer a última, ou seja, a vontade. É o marco legal que se deve adaptar.

Não é o império da lei. É o império da democracia que, como dizia Thomas Jefferson, é o governo de e para o povo. Para terminar, sinto-me obrigada a fazer uma afirmação: Catalunha não está de maneira nenhuma fracturada. É um ‘mantra’ que se repete uma e outra vez. É muito pouco adequado, porque se em Espanha há um debate sobre a monarquia então a Espanha também está fracturada. Se há um debate sobre a tauromaquia – também a dividir o país em metade – também a Espanha está fracturada. Está a Espanha fracturada? Não. São debates normais.

Muitos estados europeus fazem habitualmente referendos sobre várias questões. É essa a essência da democracia: poder debater sem que isso projecte de imediato cenários catastróficos de fracturas. É o que está em causa: não ter um pensamento único.