Especialistas de saúde pública e políticos voltaram a reunir-se esta quarta-feira para avaliar a evolução da pandemia de Covid-19, numa altura em que Portugal regista um aumento significativo de infeções devido à maior capacidade de transmissão da variante Ómicron.
Neste encontro no Infarmed, na véspera do Conselho de Ministros, foi revelado que a incidência do vírus SARS-CoV-2 aumentou para um “máximo histórico”, mas o número de camas em UCI mantém-se estável.
É assim proposta uma “redução das medidas restritivas”, mas os especialistas deixaram alertas e lembram a importância da vacinação e das medidas de proteção individual.
Numa das intervenções foi dito que a Ómicron - a nova variante que já é dominante em mais de 90 países - atinge as “vias respiratórias superiores”, mas é “pouco severa” nos pulmões.
A Ómicron, que já representa 90% das infeções em Portugal, tem padrão diferente, ou seja, o risco de internamento é menor, contudo, a transmissibilidade e o decaimento da vacina são mais rápidos.
Foi ainda feita a previsão de que o máximo de infeções será na segunda semana de janeiro. Uma simulação mostra que os casos diários podem estar entre os 42 mil e os 130 mil nos próximos dias.
Assim, o valor número de isolados pode variar entre 4 a 12% da população em breve.
Ideias principais das intervenções:
Especialista recomenda mais autonomia da população e autotestes gratuitos
Raquel Duarte, da ARS Norte e do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto (ISPUP), face aos dados apresentados pelos especialistas, recomenda um crescimento da autonomia da população e uma maior auto-gestão do risco, com testes “acessíveis e gratuitos”.
A especialista defende que a única forma de reduzir a pressão sobre os cuidados de saúde primários, face ao número de casos de menor gravidade, é passar a responsabilidade para a população, com um reforço da comunicação.
Em concreto, é sugerido que se promova o autoteste com validação presencial ou remota do profissional de saúde, de forma a garantir que, perante uma suspeita de doença, o diagnóstico é dado no momento.
Para reduzir a pressão sobre os profissionais de Medicina Geral e Familiar e de Saúde Pública, para que possam dedicar-se com mais atenção a doentes não-covid ou a infeções mais graves, recomenda-se ainda um aumento da participação ativa de quem testa positivo na identificação de contactos de risco, por via digital.
Para que esta auto-gestão funcione, Raquel Duarte sublinha que é necessária uma comunicação "muito clara" com a população, sobre como fazer o autoteste, sobre a avaliação de risco e de necessidade de isolamento. É necessária também informação clara aos viajantes e a profissionais a trabalhar em lares.
Perante a situação de não-alerta que o país atualmente vive, a especialista propõe uma redução de medidas restritivas mas reforço de medidas gerais, como aceleração da vacinação, ventilação e climatização adequadas nos espaços públicos, proibição de consumo de bebidas alcoólicas na via pública, entre outras medidas.
No comércio, nas atividades desportivas e eventos, nos transportes e viagens, pede-se o cumprimento das medidas gerais, sem medidas restritivas adicionais.
Perante um sinal de alerta, com internamentos em UCI acima dos 70% da linha vermelha e um Rt superior a 1, os especialistas propõem um apertar das medidas, com um teletrabalho sempre que possível, diminuição de lotação dos espaços e testagem de funcionários que não possam trabalhar remotamente. No caso da restauração, recomenda-se também redução de lotação e preferência pelas esplanadas e a nível particular, recomendação de não haver ajuntamentos acima de 10 pessoas.
Utilização de máscara diminuiu, mas cuidados aumentaram na época festiva
Andreia Leite, da Escola Nacional de Saúde Pública, revelou que a perceção de risco aumentou nos últimos meses, em particular no período de 25 de dezembro a 3 de janeiro, o que contrasta com uma menor utilização de máscara em espaços fechados e em convívio próximo e de grupo.
Com base nas respostas a um questionário online, realizado entre 21 de março de 2021 e 3 de janeiro de 2022, com questões específicas para o período festivo entre 11 de dezembro e 3 de janeiro, verificou-se uma diminuição do número de pessoas que responderam que usam “sempre” máscara em espaços fechados e em grupo entre o Natal e o Ano Novo.
Ainda assim, a perceção de risco aumentou e, com isso, a frequência de testagem.
“Entre 11 de dezembro e 24 de dezembro, houve quase 50% dos indivíduos a reportar nunca terem realizado teste, valor que não chega a 30% no período de 25 de dezembro a 3 de janeiro”, explicou Andreia Leite.
De acordo com o estudo, este aumento da frequência de testagem deveu-se sobretudo à ideia de proteção de família e amigos (75,6%).
Contudo, foi também reportada, na semana entre 25 de dezembro e 3 de janeiro, uma maior dificuldade em realizar testes, fosse por não ter conseguido encontrar testes disponíveis para aquisição ou não ter conseguido agendar.
Apesar da menor utilização de máscara, o estudo verificou uma elevada adoção de medidas na época festiva (96,0%).
A medida mais frequente foi a realização de testes (71,0%) antes das reuniões familiares.
“Também foram referidos, com mais de 50%, o arejamento dos espaços, a limitação do número de pessoas reunidas e garantia de que todas as pessoas elegíveis tinham esquema vacinal atualizado”, relatou Andreia Leite.
A evolução da perceção de risco, explicou a investigadora da Escola Nacional de Saúde Pública, é “coerente com o agravamento da situação epidemiológica”.
“Máximo de casos será na segunda semana de janeiro”
Baltazar Nunes, investigador do Instituto de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA), prevê que Portugal terá um máximo de novos casos entre as primeira e segunda semanas de janeiro. No entanto, "se as medidas que estão a ser agora implementadas se traduzirem numa eficácia de redução de contactos de cerca de 30%", a incidência da Covid-19 começará a descer após esse pico.
"Veremos uma inversão da tendência e começaremos a ver a incidência a decrescer. Ao levantarmos estas medidas vai haver um 'plateau' de casos e que mais tarde vai traduzir-se num decrescimento da incidência, aqui já pela própria evolução da epidemia. Ou seja, assumimos que o máximo de casos seja esperado para a primeira e segunda semana ou segunda semana de janeiro", referiu.
"O número de novas infeções pode ser de 42 mil a 130 mil novos casos em janeiro", acrescentou, salientando que se trata de uma previsão.
Numa análise às últimas semanas de epidemia, Baltazar Nunes salientou que, embora as infeções tenham disparado, com crescimento da incidência de 12% por dia, os internamentos em enfermaria e cuidados intensivos (UCI) mantêm-se estáveis.
"No caso das hospitalizações o crescimento é de 2% ao dia. Estamos com ocupação de 100 camas por milhão. Tínhamos 670 camas na onda de janeiro de 2021. Verifica-se uma tendência ainda não crescente em UCI. Mas estamos numa fase precoce, é preciso monitorizar a evolução", assinalou.
O investigador relatou que houve um aumento de cerca de 25% dos contactos no Natal e de 15% no período do Ano Novo.
A melhor forma de reduzir impacto da variante Ómicron é atingir níveis elevados de cobertura vacinal da dose de reforço da vacina Covid-19 na população de risco, alertou, e é nesse sentido que o plano está desenhado.
"Seríamos capazes de atingir uma cobertura de 90% com a dose de reforço na população com 65 e mais anos até 17 de dezembro, de 90% nos 60 a 64 anos até final do mês de janeiro, no grupo dos 50 a 59 até meados do mês de fevereiro e até meados de março também vacinávamos o grupo dos 40 aos 49 anos. Consideramos uma cobertura de 75% até ao final de janeiro nos cinco aos 11 anos", detalhou.
Quanto a projeções, o total de pessoas isoladas, em quarentena ou em absentismo, na primeira ou segunda semanas de janeiro, em que é esperado o pico de casos, pode variar entre quatro e 12%.
As hospitalizações podem ir de um total de 1.300 a 3.700 camas em enfermaria na última semana de janeiro ou primeira de fevereiro, e em UCI o total esperado são 180 a 453 camas ocupadas para as primeira ou segunda semanas de fevereiro.
"Ficarão muito aquém do máximo observado no mesmo período em 2021", notou.
Ómicron com menor risco de internamento, mas mais resistente às vacinas
Ana Paula Rodrigues, epidemiologista do INSA , mostrou dados que comparam a gravidade da doença causada pela variante Ómicron e Delta, revelando que há vários sinais de menor gravidade da infeção no caso da variante Ómicron.
A epidemiologista refere que em Portugal há uma seroprevalência muito elevada, devido aos bons métodos utilizados na campanha de vacinação. De acordo com os dados do mais recente inquérito serológico, em outubro, 86% da população portuguesa já tinha anticorpos contra o novocoronavírus. Os valores são superiores na população acima dos 70 anos.
Há uma forte relação entre os anticorpos detetados e os anticorpos neutralizantes contra a infeção. Ana Paula Rodrigues assinala que, uma vez que já foi iniciada a vacinação com a dose de reforço, a população mais velha encontra-se mais protegida contra os internamentos. Há uma fasquia de 70% entre os 50 e os 59 anos que ainda não foram imunizadas com a dose de reforço. Entre os mais novos, porém, é esperada uma carga viral superior.
Em resumo, a especialista nota que há vários sinais de menor gravidade da infeção com Ómicron e que o risco de internamento em cuidados intensivos é menor. Já a efetividade da vacinação é menor e o decaimento é mais rápido, mas esta efetividade é reposta com a dose de reforço, pelo que se pode concluir que há um "padrão diferente nesta onda Ómicron", que apresenta uma prevalência elevada mas um peso relativo menor".
"Não significa que passaremos a ter uma infeção ligeira, mas é mais benigna", alerta a especialista, que remata dizendo que continua, por isso, a impor-se a manutenção das medidas restritivas.
Nova variante é responsável por 90% dos novos casos
No dia 24 de dezembro, a variante Ómicron já tinha 50% de prevalência no país, com um forte crescimento na semana após o Natal. A grande disseminação da nova variante teve "muito a ver" com a faixa etária dos 20 aos 29 anos.
"Cerca de 80% dos genomas sequenciados já pertencem à variante Ómicron", referiu o especialista sobre os dados mundiais desta variante, que foi detetada em pelo menos 90 países.
Na semana antes do Natal, a região de Lisboa e Vale do Tejo já tinha "à volta dos 50% das infeções".
De resto, Portugal está agora numa fase diferente da pandemia, caracterizada pelo número de novos casos mais elevados, com "valores históricos" desde o início da pandemia. A afirmação é de Pedro Pinto Leite, da Direção-Geral da Saúde, que apresentou os números da atual situação epidemiológica no país.
Com uma média de 21 mil casos diários nas últimas semanas, a incidência aumentou para um máximo histórico, com tendência fortemente crescente a nível nacional, em particular nas regiões de Lisboa e Vale do Tejo e Madeira. Esta realidade já se faz sentir nos internamentos, mas a nível de cuidados intensivos, Portugal está ainda abaixo da linha vermelha de alerta, com uma média de 140 a 150 de internados em UCI, nas últimas semanas. Isto mostra que a vacina está a ser eficaz na proteção de doença grave.
No entanto, Pinto Leite revelou ainda que existe uma criança ou jovem internada em unidades de cuidados intensivos (UCI) com covid-19 em Portugal.
Fase diferente com "valores históricos" de casos
Pedro Pinto Leite, da Direção-Geral da Saúde, pegou na faixa etária acima dos 80 anos para mostrar a eficácia da vacina a reduzir o risco de morte. Antes da vacinação, em cada 100 casos de Covid-19 nesta faixa etária, morriam 24; a vacinação reduziu este número para 8 - 9 mortes. Já a dose de reforço conseguiu reduzir ainda mais, para 5 mortes por 100 casos.
A maior incidência da doença mantém-se no grupo etário dos 20 aos
29 anos, com o aumento da incidência em todos os grupos etários,
"especialmente nos mais novos”.
Numa análise mais científica, João Paulo Gomes deu várias explicações para a maior transmissibilidade da variante Ómicron.
"A variante Ómicron tem muitíssimo mais mutações do que a
variante Delta e tem muito mais afinidade para as nossas células, o que
justifica em parte a sua maior transmissibilidade", detalhou.
O investigador do INSA revelou, ainda, que a Ómicron multiplica-se 70 vezes mais rapidamente do que a variante Delta nas células das vias respiratórias superiores - garganta, traqueia -, mas também 10 vezes mais lentamente nas células das variantes respiratórias inferiores, os pulmões.
"Isto justifica a maior transmissibilidade e a menor severidade da variante Ómicron", concluiu.
Já não faz sentido pensarmos erradicar a pandemia, diz Henrique Barros
Henrique Barros, do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto (ISPUP) considera que, tendo em conta a “clara dissociação do número de casos com a sua gravidade”, já não faz sentido pensarmos em função do número de casos diários, na resposta à pandemia.
O especialista em saúde pública considera que se está a verificar um caminho no sentido de variantes menos patogénicas e mais transmissíveis e que, com reforço da vacinação e testagem massiva, “é possível controlar a infeção”.
O epidemiologista diz mesmo que “não vale a pena continuarmos com um esforço de erradicação” da pandemia, como no início. “O essencial é antecipar e responder”, diz.
O especialista do ISPUP salientou que, atualmente, o mundo vive com um mobilidade muito próxima à que havia antes da pandemia, com uma enorme liberdade de circulação, e que, apesar de tudo, "é brutal" a diferença no número de óbitos e internamentos, em enfermarias e em cuidados intensivos, em relação ao ano passado. Para o epidemiologista, é "tranquilizador" que o aumento de casos não se esteja a repercutir na gravidade da infeção.
"Estamos a viver circunstâncias que facilitam a circulação do vírus", explica. "Neste momento, apenas a Suécia vive uma situação ainda mais aberta do que o nosso país". Ainda assim, os casos não se associam, na sua maioria a doença grave, mesmo com uma testagem cinco vezes maior por mil habitantes do que há um ano.
Por isso, Henrique Barros acredita mesmo que, com vacinação e testes, "podemos viver de uma forma próxima da normalidade".
Ainda assim, o especialista lembra algumas incertezas que se mantêm, nomeadamente sobre o efeito da variante Ómicron em não vacinados, sobre o qual ainda não há dados suficientes. Por outro lado, também não há dados sobre a "long covid", os efeitos prolongados que se têm detetado em pessoas já recuperadas da doença, em casos da nova variante.