Todos reconhecemos que os dias e os meses que se seguem serão de longas horas de reflexão, de escolhas cirúrgicas e de equilíbrios improváveis. Estamos, e estaremos, muito gratos a todos os profissionais do Serviço Nacional de Saúde, à coragem dos doentes que batalharam ao seu lado para querer viver, e às empresas e funcionários que mantiveram a nossa vida segura, organizada, alimentada, limpa. Também não esqueceremos a energia persistente dos pais de família a trabalhar e a ensinar em casa, nem todos os bravos habitantes de lares e outras estruturas de acolhimento.
E, agora que a batalha da implosão do Serviço Nacional de Saúde parece ganha, está na hora de inventar um mundo novo e o governo – muito mais ameaçado por um “Passos Coelho” do que por um “Churchill” – terá de estimular as medidas de recuperação de quase todos os sectores da sociedade. Dentre estes, a escola joga o habitual papel de go-between e é imprescindível assumir as mudanças que é necessário operar para que possa funcionar em confiança, inclusão, equidade e competência educativa.
Como a ciência aconselha a permanência do afastamento profilático, as escolas terão de trabalhar por turnos, de um reduzido número de horas, para garantir grupos pequenos nas salas e contenção durante os recreios. Como as turmas portuguesas são grandes e muitos equipamentos escolares envelhecidos e precários, é imprescindível um ajustamento restrito da carga horária presencial – a gerir com as famílias –, a introdução de atividade física orientada nos intervalos, a multiplicação de funcionários para garantir a ordem e a limpeza nos espaços comuns, tudo pensado, também, para proteger os adultos e as famílias, sem rebentar com o orçamento.
Parece que o modelo de escola a tempo inteiro chegou ao fim do seu controverso reinado e que novos modelos de gestão das escolas se impõem para evitar uma rutura humana e financeira. Assim, esta é a hora da verdadeira descentralização, talvez da municipalização plena, já que as decisões devem ser tomadas com um grande conhecimento das realidades mais locais e com a colaboração plena dos docentes, dos funcionários e dos pais. Certamente os professores mais experientes poderão gerir os currículos e reanalisar os programas em torno das aprendizagens essenciais de modo a discernir aquilo que será trabalhado em modo presencial e aquilo que pode ser encaminhado para a telescola e as plataformas de interação à distância.
Para poder rentabilizar adequadamente a telescola, é necessário acordar que conhecimentos e que competências serão tratadas televisivamente, para evitar retirar liberdade curricular às escolas, mas, mesmo assim, garantindo que a televisão é um verdadeiro facilitador da aprendizagem. Esta rentabilização precisa de muita afinação e, desde já, a escolha da RTP Memória parece uma secundarização de um elemento de trabalho que pode ser funcional e está a custar dinheiro ao contribuinte. É imprescindível aumentar a capacidade técnica da iniciativa, alguma da qual pode ser partilhada com as outras televisões e com o ensino privado. Depois, é preciso rever os horários tendo em atenção os turnos que as escolas vão adotar, definir quais as atividades e o lugar que terão no desenvolvimento dos alunos e na aprendizagem das matérias, com um máximo de autonomia e autorregulação para estes.
Esta nova escola implica que o Estado vai ter de investir nalgumas contratações, no fornecimento de meios informáticos aos alunos daquelas 23% de famílias que não têm acesso à internet e que o tempo de trabalho online tem de ficar muito bem adaptado às idades – talvez deva ser residual para as crianças mais pequenas – mas, sobretudo, continuar a investir na formação dos professores, repensar os mega agrupamentos verticais e o lugar e papel dos diretores. É também o momento em que pode aproveitar para reforçar o papel de uma escola mais “verde” na saúde dos alunos, a começar por recuperar uma boa alimentação (que pode seguir para casa), e por promover a educação para a saúde física e mental, restaurando a medicina escolar e fortalecendo a psicologia educacional.
Este é, por alto, o retrato do novo mundo escolar: a escola, como a conhecíamos, se calhar não vai regressar, mas podemos ter uma outra, melhor, mais justa, mais motivadora, mais inteligente, mais acolhedora. Por isso mesmo, não podemos gastar dinheiro e tempo a tentar reproduzir em novos suportes o que tínhamos, por muito que estivesse a inovar. Podemos aproveitar recursos, como o mentorado profissional, já que os professores mais velhos dificilmente poderão voltar às turmas, mas podem ajudar a reconverter e a integrar os colegas mais novos. O melhor disto tudo é que, na sua maioria, está já previsto na lei, falta-nos a mudança de mentalidade, revendo os modos de organizar e realizar o trabalho, refundando-os. E ter em consideração que, numa sociedade avançada, os pais podem ser ajudados a educar, mas não devem fazer o papel de professores.
Finalmente, não será fácil progredir para uma escola mais cooperativa quando a proximidade física deve ser evitada, mas o distanciamento, e o vai e vem de outros confinamentos, não impedem que se reveja o papel e as modalidades da avaliação, algumas das quais podem ser seriamente cooperantes, como estimular os alunos do ensino secundário a acompanhar as tarefas escolares de colegas mais novos e, depois, integrar esse trabalho no sistema de candidatura a um estágio pago ou ao ensino superior.
Precisamos mudar as escolas, essa eternamente “impossível” tarefa, e uma crise desta envergadura, é “a” oportunidade. Durante muito tempo, e num tempo muito difícil, passou-se a mensagem da exclusiva responsabilização dos professores, como os únicos construtores do sucesso, ocasional, e os infelizes reprodutores do insucesso escolar, tão evidente na escola de massas. Mas, as escolas são das sociedades, que nelas entram todas as manhãs e, às vezes, saem dali, em direção a coisa nenhuma. No entanto que outro sítio somos nós capazes de criar para garantir abrigo ao futuro comum?