Qualquer decisão judicial sobre o crime de violência doméstica que “não afaste o agressor da vítima viola a lei. Além de dar um sinal errado à sociedade”. O procurador Rui do Carmo comenta desta forma o acórdão do Tribunal da Relação do Porto que considerou uma atenuante do crime de violência doméstica o facto de a vítima não querer manter um relacionamento sexual com o marido que a agredia há 50 anos.
No programa Em Nome da Lei, da Renascença, o coordenador da equipa criada pela ministra da Justiça para avaliar o comportamento das autoridades judiciárias em processos de homicídio em violência doméstica considera que ”se tem feito um caminho muito importante, quer nos tribunais quer na legislação, nomeadamente em matéria de segurança das vítimas, permitindo que sejam colocadas em casas abrigo”.
Uma decisão em sentido inverso tem pois de ser ”claramente criticada”, defende o procurador Rui do Carmo.
Os dois juízes da Relação do Porto, que assinam a polémica decisão, acabam por defender que o caso de violência doméstica sobre o qual decidiram se resolveria com “tratamento psicológico ao agressor, de forma a que este e a vítima pudessem vir a estabelecer uma sã convivência no futuro”.
Sem querer comentar concretamente a decisão, o procurador Rui do Carmo lembra que a Convenção de Istambul, que Portugal ratificou, “impede que seja imposto à vítima qualquer processo de reconciliação com o seu agressor”.
A proposta conciliatória entre vítima e agressor é uma das razões pelas quais Frederico Moyano Marques não tem dúvidas em classificar o acórdão da Relação do Porto como “uma má decisão judicial”.
O jurista da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) condena também toda a narrativa desculpabilizante do agressor, pelo facto de ele ser doente oncológico e dependente do álcool. Frederico Moyano Marques diz, no entanto, que “decisões como esta não são a regra”.
O jurista da APAV defende que não é pelo Tribunal ter decretado que o agressor está obrigado a apresentar-se semanalmente na esquadra da polícia que “ele vai deixar de continuar a praticar o crime”. Este é, por isso, mais um caso a demonstrar “como é importante a formação dos magistrados, em matéria de violência doméstica, sobretudo na avaliação de risco”.
Aluna do mestrado de Direito Forense, Frederica Queirós Colaço reconhece que ficou chocada com o acórdão. ”O que mais me choca é a fundamentação e as expressões utilizadas e o facto de estarmos a falar de um acórdão de um tribunal superior e, portanto, as palavras usadas aqui poderem fundamentar outras decisões judiciais daqui em diante. E eu acho que isso é muito preocupante”.
Também a advogada de Direito da Família, Ana Sofia Gomes, considera que se trata de uma “decisão inesperada, quer tendo em conta o quadro legal em vigor quer o quadro de valores da sociedade atual”.
A professora na Universidade Lusíada lembra, no entanto, que entre os deveres conjugais está o de os cônjuges manterem uma vida sexual conjunta. “Existe no casamento uma obrigação de débito conjugal que antes da reforma de 2008 até conferia legitimidade para ser requerido o divórcio”.
Os cônjuges estão vinculados pelos deveres de respeito, fidelidade, coabitação, cooperação e assistência, de forma recíproca e “isso continua a fazer sentido”, conclui Ana Sofia Gomes.
O procurador Rui do Carmo adverte que "não pode haver ato sexual de relevo não consentido, fora ou dentro do casamento”.
“Não há nenhum dever conjugal que legitime esse tipo de comportamentos. Qualquer ato sexual praticado contra a vontade do outro, é crime e uma violação dos direitos humanos”, sublinha.
Declarações ao programa Em Nome da Lei da Renascença, em que esteve em debate uma decisão do Tribunal da Relação do Porto que considera uma atenuante da violência doméstica o facto de a vítima não querer ter relações sexuais com o agressor.
O Em Nome da Lei pode ser ouvido nas habituais plataformas de podcast ou no agregador da Renascença, o Popcast.