Trump: “Próximas semanas serão um inferno, é uma questão de vida ou de morte”
01-04-2020 - 19:15
 • José Alberto Lemos, correspondente nos EUA

O cenário de pesadelo agrava-se na América. Mortes podem chegar às 240 mil, segundo os cientistas, que convenceram o Presidente da gravidade da situação. Foi tarde demais, contudo. Até hoje já morreram 4 mil pessoas, mais do que no 11 de setembro. E há 200 mil infectados.

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Mais vale tarde do que nunca, diz o ditado. Mas quando o atraso em tomar medidas se traduz num significativo número de mortes e deixa todo um país sem estratégia e sem coordenação em relação a um vírus letal, esse atraso é, também ele, letal.

O "Boston Globe", um dos mais prestigiados diários americanos, não poupou nas palavras: “O Presidente Trump tem as mãos cheias de sangue”. Atraso criminoso, portanto, no juízo do jornal.

Foi um atraso que durou cerca de dois meses, mas que não foi mera negligência, foi a negação de uma realidade que ia saltando aos olhos de dia para dia e para a qual não faltaram alertas vindos de todo o lado, interna e externamente.

Esta terça-feira, finalmente, Trump veio desdizer tudo aquilo que andou a dizer desde janeiro e assumiu publicamente que o coronavírus era “uma questão de vida ou de morte”. Já o tinha feito, parcialmente, no domingo, mas o briefing de terça-feira foi diferente.

Foi uma espécie de rendição de Trump à força da realidade e aquilo que os cientistas e os especialistas a trabalhar na Casa Branca lhe andavam a dizer há muito tempo. Por isso, o Presidente decretou 30 dias de restrições sociais, que correspondem a todo o mês de abril. Embora não tenha referido maio, disse que junho será o mês do regresso à vida normal, o que permite pensar que os próximos dois meses serão de clausura na América.

O tom foi pesaroso, sombrio, quase não houve as bravatas habituais de auto-elogio, substituídas pelos alertas aos americanos. Três exemplos:

“As próximas semanas serão um inferno como nunca vimos, muito, muito dolorosas”, disse Trump agora. Em fins de fevereiro, tinha dito que “um dia o vírus vai desaparecer como por milagre”.

Isto “não é a gripe, é perverso”, disse Trump agora. A 26 de fevereiro tinha dito que “é gripe, é como a gripe”, que, tal como os acidentes de automóvel, “mata mais gente” do que o coronavírus.

“A economia é a minha segunda prioridade. Agora quero salvar vidas”, disse Trump agora. Na semana passada tinha dito que “não podemos permitir que a cura seja pior do que o problema” e prometeu “abrir o país aos negócios muito em breve, porque o país não foi feito para estar fechado”.

Entre a atitude inicial de negação e o reconhecimento tardio da realidade morreram quatro mil americanos, mais do que nos ataques terroristas do 11 de setembro. Mais de 1500 só em Nova Iorque, a principal vítima do 11 de setembro. Os EUA são agora o epicentro da crise, segundo a Organização Mundial de Saúde, e o inferno que Trump anunciou está só a começar. No dia destas declarações, terça-feira, morreram 800 pessoas, aproximando-se dos números do flagelo diário vivido em Itália e em Espanha. Neste momento, ultrapassou já o número de mortos oficiais na China. E conta com 200 mil infectados.

Mais do que no Vietname

Mas as projeções feitas pela “task force” da Casa Branca são arrepiantes. No domingo admitiram entre 100 e 200 mil mortos, agora o pior cenário subiu para 240 mil mortos. No domingo, Trump aproveitou para dizer que se os números finais ficarem pelos 100 mil será a prova de “um trabalho muito bom” no combate ao vírus. As vozes críticas não tardaram em ouvir-se. “Que tipo de pessoa pode admitir que 100 mil mortos é um bom número?”, interroga-se um colunista do Washington Post, enquanto um radialista conservador, fiel apoiante do Presidente, se indigna com tal afirmação. “O Presidente está a dizer-nos que 200 mil pessoas são descartáveis e que só faltam morrer 198 mil?”.

O cenário mais gravoso, de 240 mil mortos, tem em conta as medidas de mitigação adotadas, que incluem o distanciamento social, o fecho de escolas, a paralisação da economia, etc. Mas o Imperial College britânico tinha feito uma projeção baseada na ausência de medidas mitigadoras que apontava para 2,2 milhões de mortos ou 1,1 milhão no caso de serem adotadas algumas medidas moderadas.

Em 1918, a chamada gripe espanhola, que nos finais da I Guerra Mundial vitimou milhões de pessoas na Europa, matou 675 mil americanos e uma outra epidemia de gripe em 1957 matou entre 70 e 116 mil nos EUA. Mesmo no cenário mais otimista, a Covid-19 ameaça matar mais gente do que qualquer outro acontecimento na era moderna americana. Na guerra do Vietname morreram 58 mil soldados dos EUA.

Não surpreende, pois, que os números tenham assustado Trump a partir do momento em que decidiu ouvir mais os cientistas do que o coro de conservadores mais ou menos fanatizados que todos os dias tentam influenciá-lo, sobretudo na Fox News. Para além das imagens chocantes que lhe foram chegando de todo o país dando conta da luta do pessoal de saúde para salvar vidas, algumas sondagens ajudaram-no também a decidir-se.

Sondagens ajudaram

Parece haver um reconhecimento entre a maioria da população de que não haverá regresso possível à normalidade enquanto o vírus for uma ameaça. 52% dos americanos preferem medidas generalizadas de isolamento, enquanto 38% preferiam que se isolassem apenas os que estão infetados. Salvar vidas primeiro e tratar da economia depois é a opinião da maioria, mesmo daqueles que estão a ser afetados pessoalmente pela paralisação. Nove em cada dez americanos estão dispostos a aceitar restrições na sua vida quotidiana para vencer esta batalha contra o coronavírus.

Estes dados, provenientes de vários estudos de opinião, entre os quais o Pew Research Center, foram postos à consideração de Trump pelos seus assessores, o que contribuiu certamente para a sua conversão à tese dos cientistas. Quando a decisão certa coincide com a mais conveniente politicamente a opção não é difícil.

Um cálculo político em particular terá sido determinante. O pior cenário seria se os sacrifícios feitos agora se tornassem ineficazes devido ao relançamento da economia e no outono houvesse novo surto epidémico. Ter de repetir as restrições sociais, prejudicando de novo a economia, porque na primavera não se tinha feito o suficiente em nome dessa mesma economia, seria um verdadeiro pesadelo político para Trump. As eleições presidenciais são a 3 de novembro, convém lembrar.

Até lá, a Casa Branca empenhar-se-á numa narrativa diferente em relação à crise, como já assinalámos. Em vez de elogiar as proezas económicas da administração, elogia a forma como o Presidente tem lidado com a crise, sublinhando o caráter imprevisível e sem precedentes da epidemia.

E alguns republicanos até já têm uma justificação para a desvalorização que Trump fez do vírus durante dois meses. A culpa foi do “impeachment”, descobriu o líder do Senado, Mitch McConnell. Numa entrevista a um radialista conservador, McConnell disse que andava toda a gente distraída, porque preocupada, absorvida, com o processo de destituição do Presidente enquanto o coronavírus avançava pela calada da noite.

O problema desta tese é que não é corroborada pelos factos, como aliás grande parte das teses inventadas pelos adeptos mais indefetíveis de Trump. O primeiro caso de coronavírus na América foi detetado a 21 de janeiro, mas a China alertou as autoridades americanas para o problema ainda antes disso. Trump foi absolvido no processo a 5 de fevereiro e todas as suas declarações a desvalorizar o vírus são posteriores, incluindo a de que iria desaparecer um dia por milagre.

Mais: após 5 de fevereiro, Trump fez 11 comícios e passou 9 fins-de-semana a jogar golfe. Nestes, provavelmente estava bastante distraído para se preocupar com o vírus, mas nos comícios o tema foi várias vezes alvo de chacota, com acusações aos media e aos democratas de que o coronavírus era a nova esperança de ambos para derrotar o Presidente em novembro.

Argumentos que utilizou também nos briefings que fez na Casa Branca justamente sobre o vírus e que decorreram nos meses de janeiro e fevereiro. Na terça-feira, interrogado sobre a tese de Mitch McConnell, Trump pareceu ter sido apanhado desprevenido e desmentiu o líder do Senado. “Creio que não faria melhor sem impeachment”, disse.

Nem sempre a estratégia republicana assente em “factos alternativos” está bem afinada…