Que estado da nação é este? Ouvido de ponta a ponta o debate de quinta-feira, fiquei sem saber. O Governo puxou a brasa à sua sardinha, sem lhe podermos levar a mal. Mas ninguém se reconhece à esquerda ou à direita naquele retrato. Agora é que vai ser? Tomara. Costa fez o que pôde? Talvez. Mas era preciso muito mais.
De facto, o crescimento previsto para este ano, foi revisto, em alta, pelo Banco de Portugal, mas já todos nos esquecemos que os 4% agora previstos (a Grécia espera 16%!) eram afinal iguais aos esperados, no cenário mais negro, do relatório de Inverno, já em plena pandemia. Pior: quando, antes, dizíamos o "insuspeito" Banco de Portugal pensamos, agora, nas previsões do ex-ministro das Finanças do "atual" governo. É uma injustiça? É. Não serve é para reforçar a confiança.
Os jovens afetados pelos despedimentos em massa, por não renovação de contratos temporários, pelo exagero do medo, explicam uma taxa de desemprego até aos 24 anos que subiu quase seis pontos entre o primeiro trimestre de 2019 e o primeiro trimestre deste ano (ultrapassando os 24%).
Ou seja, um em cada quatro jovens está desempregado quando a média nacional se fica em 7,1%, dados do INE, superando as melhores expectativas. E muito longe da catástrofe "passista" dos 18 % de 2013.
O grupo dos 16 aos 34 anos que não estuda nem trabalha, em Portugal, os chamados "nem-nem" que não chegava aos 11%, no final do ano passado, atingia em finais de março, deste ano, os 262 mil. Isto é, 12,4% nesta classe.
Embora os dados, do INE, não sejam exatamente comparáveis aos do Eurostat, mostram que o ano passado Portugal estava ainda abaixo da média de 17, 6 %, mas já tinha sido, entre os 27, um dos países que mais subira neste indicador.
Há mais 400 mil pobres e o país que sempre foi desigual ficou, durante a pandemia, ainda mais. Os que não puderam fugir à Covid-19 e nunca confinaram asseguraram o funcionamento da economia nos mínimos, mas não a deixaram morrer.
Agora que ela começa a renascer, são exatamente os mesmos a colher menos benefícios da chuva de dinheiro de Bruxelas. Quem perdeu o seu lugar na fábrica, no pequeno comércio ou nas caixas de supermercado não vai arranjá-lo, agora, como pedreiro ou a assentar carris da prometida ferrovia.
Vai ser criado muito emprego, mas sobretudo para migrantes, os trabalhadores das Odemiras esquecidas vão provavelmente multiplicar-se um pouco por todo país porque ainda estamos no começo e já o empresariado se queixa de que "não há mão de obra disponível para múltiplas necessidades".
Além disso, quer na ciência, quer na sustentabilidade, quer a própria digitalização (os empregos que se vão criar serão de raiz e exigem muito melhor formação), provavelmente, já teremos de "importar engenheiros" como importamos médicos para o interior e exportamos cursos inteiros dos enfermeiros de que continuamos a precisar como de pão para a boca.
Os formadores terão muito trabalho, mas não pode acontecer como nas ajudas pré-adesão ou na farsa de ensino profissional. Faltam eletricistas, técnicos de informática, e canalizadores, além de aprendizes vários para uma série de funções, mas os formadores não podem saber na teoria menos do que os formandos sabem na prática, ou ensinar mecânicos sem saber sequer o nome das peças, nem nunca ter desmontado um motor. Desta vez a formação terá de ser levada a sério.
Os 7,1% de desemprego, mesmo com 13% ou 14% de "desemprego real", ou subemprego, comprovam a eficácia de algumas medidas tomadas durante a pandemia, mas podem tornar-se quase endémicos num país de pobres, desdentados e desempregados.
Não, nem tudo correu mal. Por mais que nos espantemos é, mesmo assim, muito pouco para a miséria que se vê. A resposta só pode estar numa economia informal muito mais enraizada do que supúnhamos antes desta crise.
A mesma que nos fez acordar para uma série de coisas conhecidas, mas varridas, anos a fio, para debaixo do tapete. A desgraça dos lares ilegais, o papel decisivo das associações, das IPSS e das autarquias. A rede preciosa que evitou, até agora, a rotura do tecido social. Abençoados milhões que aí vêm a tempo de fazer de dique ao transbordar da barragem da indignação.
Estão ainda muitos jovens em lay-off. As casas para arrendar não descem e os que as compraram iludidos pelas baixas taxas de juro, acreditando no país em retoma com o menor défice orçamental da democracia no ano de ouro antes da pandemia, já não as conseguem pagar. Sabem que as moratórias, que iam acabar em setembro, vão afinal durar até dezembro, mas o alívio não passa de uma ilusão. Para eles a inflação já está alta, mesmo antes de aumentar e a aflição não desce, imparável já vai para dois anos. Os divórcios não disparam porque passou a ser demasiado caro "descasar". Os nervos andam em todo o lado à flor da pele.
As malvadas leis laborais da troika, afinal, continuam por aí, e apesar do esforço do PCP na sua revisão a verdade é que o PS só irá cumprir a sua promessa programática de revisão depois de concluídos os despedimentos em massa que já atingiram por atacado o Santander, a TAP, a Altice e muitos outros que se vão colocando na fila para que a "reestruturação empresarial" fique feita antes de concluído o braço de ferro entre os apoiantes do próximo orçamento e o Governo minoritário. Para esse peditório o BE diz que já deu e o PS não parece interessado em ir a reboque da propaganda mais radical de Catarina Martins. Já lhe basta ter Pedro Nuno Santos dentro do próprio Governo.
Voltando aos números, temos de reconhecer que o balanço do Governo podia ser pior. A propaganda é que não. João Duque já desmontou aquela inenarrável invenção do crescimento mais forte do último século conseguido em apenas dois anos (9%), conseguido por engenho e arte de João Leão a confirmarem-se as últimas estimativas. O ministro refere o número, sem se rir, e sobretudo sem referir que o último século nem sequer fez 25 anos.
O valor é suficientemente alto "para encher o olho," mas, na verdade, só chega para nos colocar umas décimas acima do nível da riqueza que tínhamos em 2019 porque tem por base uma queda de 7,6% registada em 2020 (superior à verificada nos nossos parceiros), compensada agora parcialmente pelo crescimento de 3,9% de 2021 e os esperados 5% do ano que aí vem.
Resumindo, teremos, nesta legislatura, mais afastamento e divergência, ficando cada vez mais perto da cauda europeia. Desta vez seremos muito provavelmente ultrapassados por mais alguns países recém-chegados e as preocupações presidenciais podem não chegar para evitar que acabemos cada vez mais longe da frente do pelotão.
Os impostos não descem e para a chamada classe média, a comparação com os níveis de vida dos que partiram para outros países "envergonham". Em cada gestor, engenheiro, matemático, economista ou médico formado há candidatos a partir. Mas também os nossos pedreiros, eletricistas e mecânicos retomam os caminhos dos avós rumo a Paris, Londres e a velha Suíça.
Num país que apostou tudo no turismo, que no início da crise já valia 14% da riqueza total, o sector praticamente parou. O Governo conseguiu um quase milagre. Susteve a respiração de gente que tendo caído no fundo do mar de rosas em que navegava, ainda não se afogou. Se a retoma vier. Consegue-se o impossível. Mas, o mais provável é que haja toda uma geração que em 2013 foi lançada para o desemprego e estava agora com os seus novos negócios a chegar à tona, obrigada a mergulhar outra vez, vítima de um autêntico tsunami geracional. Para esses? Nada?
Na saúde, o milagre é só uma encenação. Quem lá trabalha, a começar, ou já à beira da reforma, com 20 ou 50 horas trabalhadas por semana, é unânime no diagnóstico: não há mais paciência. Só vai para médico e enfermeira quem tem vocação para o sacrifício máximo pelos outros? Pois. É muito bonito, mas na hora de optar por salários de miséria e vida de escravos, ou salários decentes e poder alimentar e educar a família não há escolha possível. Temos pena.
Catarina Martins destapou a careca socialista: os 4.500 trabalhadores que entraram no SNS ou os mais que irão entrar são afinal os mesmos já previstos antes da pandemia. Para necessidades muito mais exigentes e colegas literalmente exaustos.
Curiosamente, todos os profissionais de saúde, ou quase, gostariam de ficar no serviço nacional de saúde. A tempo inteiro até. Mas assim não. Os velhos dizem que já deram para o peditório. Os mais novos juram que não vão dar. Já chega o que tiver de ser. As novas gerações não consideram que "amouxar" seja um dever cívico.
A gestão parece caótica em todo o lado. E na maioria dos casos é mesmo. Os meios são tão escassos que os mais novos lançados às feras, vão lutar por ter vidas melhores. Consultem-se as escalas de serviço de público e privado e veja-se como existe toda uma classe com o dom da ubiquidade. E se se quiser por cobro ao desplante é melhor pensar antes duas vezes, porque o risco de debandada dos melhores é total. Mais vale pouco e bem do que ninguém.
Catarina Martins tocou na ferida no debate "quinzenal desta semana" aquele que passou a semestral, pela estranha vontade da oposição, e a que se dá o pomposo nome de Estado da Nação em vez do mais adequado título "do Estado em que "eles" estão". Uns cegos pela propaganda. Outros cegos pelo populismo, outros míopes sobre o país que desconhecem e de que leem umas coisas, dia sim dia não. E os restantes nas últimas ou nas primeiras leituras do velho "Príncipe". Todos a olhar para o lado errado do que verdadeiramente interessa àqueles que representam. Exceto a meia dúzia de bombeiros de serviço que nas quatro "pontas " do hemiciclo vão recolocando o foco no que diz alguma coisa às pessoas.
Cabrita é mau demais e deve sair do Governo? Afinal também foi ele que autorizou as celebrações do Sporting? (o dia da libertação dos leões à míngua de festas nos últimos 40 anos?). O povo encolhe os ombros e pergunta: quem é? Num Governo de um homem só de que valem os valentões que o rodeiam no papel de valetes ou vilões.
A Constituição deve ser revista e o sistema eleitoral também? Por causa do número de deputados? Para engrossar o centrão e acabar com as "Joacines"? Alguém se importa de explicar, ao mesmo povo, qual é verdadeiramente o ponto? Talvez Ribeiro e Castro consiga explicar. Mas quem tem tempo e quer tirar um curso breve de constitucional?
Será por causa da Justiça que já não funciona? E continuará sem funcionar, mas apesar de tudo têm foros de continuar a ter a sua atuação mais básica debaixo dos holofotes das TV, com batedores munidos de máquinas de filmar a seguir por Lisboa atrás de um carro celular entre a residência onde foi detido o alegado malandro mesmo antes ou imediatamente depois de ser "constituído arguido". Direção: a sede da PJ, ou do DCIAP, ou do ‘Ticão’ ou simplesmente a caminho da Carregueira.
O que se queria mesmo era que alguém explicasse como vão recuperar conhecimentos as criancinhas que não aprenderam nada, ou quase nada, no ano que passou. Sobretudo, se os pais tiverem de recuperar também de analfabetismo funcional, ou abandono escolar, numa via rápida a criar para apanhar o comboio da mudança "epocal" em que vivemos como diz Tolentino Mendonça. Sem falar dos avós e da péssima saúde mental e geral que os caracteriza a todos, doença ainda mais contagiosa do que o Covid, e com efeitos que se prolongam de geração para geração.
O trabalho de Hélder Ferraz sobre os progressos realizados pelos alunos dos TEIP os chamados Territórios Educativos de Intervenção Prioritária é sintomático nas suas conclusões. A busca da recuperação das aprendizagens em escolas de população maioritariamente desfavorecida, como deu conta o Público esta semana, mostra um falhanço lamentável nos últimos 14 anos. Com os alunos destes mais de 100 agrupamentos a afastarem-se ainda mais dos restantes colegas, quer na nota interna, quer nos resultados de exames nacionais, quer em todos os restantes indicadores qualitativos como as taxas de retenção ou desistência. Como o país se afasta da Europa, os alunos TEIP afastam-se cada vez mais dos colegas.
Não por aparente falta de investimento nem, dedicação dos professores, conheço vários inexcedíveis, numa interpretação arriscada e já da minha exclusivamente responsabilidade, pela incapacidade de acompanhar uma evolução societal que se vai degradando a olhos vistos. Estes alunos não conseguem, maioritariamente, nem sair do ciclo de pobreza, nem apanhar o elevador social.
O estudo de Isabel Flores do ISCTE, e divulgado pelo mesmo jornal sobre os efeitos da paragem escolar que roubou um quarto dos tempos letivos em 2020/21, por efeito da pandemia, confirma o diagnóstico: aos 15 anos os alunos que fazem parte dos 20 % mais desfavorecidos apresentam, em média 2,7 anos de atraso na aprendizagem face aos seus pares pertencentes aos 20 % mais ricos. Na França é ainda pior (3,4 anos de atraso), mas na Irlanda é de apenas 1,8 anos e na Espanha 2,1 anos.
O relatório do Tribunal de Contas sobre a digitalização da educação é ainda mais cruel. No início da pandemia quatro em cada cinco alunos não tinha acesso a tecnologia digital e, hoje ainda, a falta de acesso a computadores não obsoletos e rede de internet ronda os 60 %. Não fora as autarquias, empresas e IPSS, a par das mais diversas ações da sociedade civil, e a coisa ainda estaria pior.
Brandão Rodrigues nos seus experimentalismos diários acabou com as metas curriculares e não cumpriu nenhuma das metas anunciadas ou promessas feitas. O Governo tinha este ano 386 milhões autorizados para gastar em educação, mas a autorização de desbloqueio por parte das finanças ficou pendente da aprovação da bazuca europeia. Costa garante que agora é que vai ser! Os "meninos perdidos", entretanto, não pararam de crescer à espera do dinheiro bazuqueiro. Alguém pensou nisso e no crime que constitui um dia de atraso nas suas vidas escolares?
Além de comboios mais rápidos e recauchutados em oficinas nacionais, dos quilómetros de carris, dos apoios à construção para casas "para a classe média" e outros temas de campanha eram coisas comezinhas como Saúde, Educação, Pensões, Salários etc… que teria sido bom falar no debate do Estado da Nação.
Assim só ficámos a saber do estado em que eles estão: o Governo esgotado, mas a nadar em notas de Bruxelas, a esquerda "amarrada", mas cansada de tanto esperar pelas promessas acordadas, e a direita à beira de um ataque de nervos, a precisar de nervos de aço e de um pouco mais de ideias e proatividade, se não quiser ficar à espera do terceiro Governo de Costa.
Na política, como na vida, há horror ao vazio.