Economista alerta. Será necessário reforçar a política social para responder aos novos pobres
04-06-2020 - 12:19
 • Sandra Afonso

Vice-presidente do Conselho Económico e Social defende como saída da crise pós-pandemia uma aposta em incentivos adequados às empresas.

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O vice-presidente do Conselho Económico e Social alerta para o crescimento de um novo tipo de pobres devido à pandemia. São trabalhadores informais ou precários que precisam de outro tipo de respostas do Estado.

Em entrevista à Renascença, Alberto Castro defende ainda a revisão dos apoios às empresas, para que não sejam um instrumento perverso, assente no endividamento, mas um incentivo. A ajuda que vai chegar de Bruxelas traz condições, que Portugal deve antecipar.

Este economista critica ainda os que aproveitam esta crise para defender mais Estado na economia e até tutelas excessivas, mas não rejeita nova ajuda do Estado à TAP, desde que garanta poder de decisão na empresa.

Sobre a eventual saída de Mário Centeno das Finanças para o Banco de Portugal, preferia outra solução.

Com o país na terceira fase de desconfinamento, os apoios e incentivos disponíveis são adequados e suficientes?

Não sei se na sua totalidade serão. Aqui temos que ver duas coisas diferentes: os incentivos às empresas, que são importantes como forma de as ir mantendo vivas, porque são fundamentais para dar emprego e rendimentos; e os apoios diretamente às pessoas e às família, e aqui há alguns extratos que estão em situações muito complicadas, precisamente porque não estavam num quadro de economia formal, relações de trabalho reguladas legalmente, ou então os que estavam nesta nova economia, a "cheap economy" (economia barata), que também tinha muito poucas proteções.

Vai ser preciso olhar para esses segmentos, que não são dos pobres típicos, são pobres de tipo novo, mas não deixam de ser gente com muitas carências e admito que aqui seja necessário o reforço da política social, de apoio dos rendimentos.

Esta crise pandémica cortou os rendimentos de muitas famílias, um sinal disso é o aumento dos pedidos de ajuda alimentar. Vamos assistir a mais uma vaga de novos pobres?

Acho que, no curto prazo, já está a acontecer. Mesmo aqueles que estão em lay-off tiveram uma perda de 30% do seu rendimento e muitos deles, como se viu pelos montantes totais acumulado, têm salários baixos, porque se fossem salários mais elevados a factura do lay-off era muito mais significativa do que aquilo que acabou por ser. Depois, somam-se todos os desempregados, muitos deles em setores da informalidade e esses recebem um apoio ainda menor.

A corrida aos bancos alimentares e a outras instituições de apoio é uma manifestação de que essa quebra de rendimento já atingiu uma parte significativa das pessoas, independentemente do que as estatísticas, por exemplo do desemprego, mostram. As pessoas não estão à procura de emprego ou estão fora da força de trabalho, pelas razões mais variadas.

O facto de grande parte dos apoios assentar no endividamento das famílias e empresas não vai dificultar a recuperação económica?

Isso tem evidentes consequências, nomeadamente no caso das empresas. Tem havido quem defenda que uma parte do endividamento deveria ser substituído por ações de natureza preferencial. Isto é, transformá-las em capital das empresas e depois, se elas forem capazes nas novas condições de irem ganhando rentabilidade, poderiam reembolsar esse capital e readquirir a autonomia estratégica, que com essas participações poderiam ser perdidas. Mas, a certa altura é quase uma inevitabilidade.

Há a possibilidade de sofisticar, tornar esses apoios incentivos, e não um factor perverso, mas num primeiro momento foi assim, teve que ser assim, e não vale a pena estarmos a chorar sobre leite derramado, agora é olhar para a frente.

O que falhou?

Nesta crise o mercado falhou em muitas coisas que tinha inevitavelmente que falhar, mas também em algumas se calhar falhou porque nem todas as transformações que existiram foram no sentido de garantir uma melhor regulação do mercado.

Isto vai dar mais papel ao estado, como é evidente, mas o essencial da saída, destas novas soluções, tem que assentar no setor privado e têm que lhes ser dados os incentivos certos, até porque é a única maneira de respondermos depressa, porque muitas das alterações que se insinuam, com grande envolvimento do estado, são coisas a médio e longo prazo, que não têm capacidade de responder tão depressa como, por exemplo, o investimento empresarial.

Prefere, portanto, menos Estado na economia? Ao contrário do que muitos têm defendido agora?

Acho que é inevitável (o Estado na economia). Agora, por exemplo, Keynes, é invocado por aqueles que acham que é preciso mais Estado, e dizem-no com ambição de ter protagonismo e se calhar uma tutela que eu diria excessiva. Keynes quando falava do Estado dizia que deve fazer o que mais ninguém pode fazer e já é muito! Já há muita coisa que o estado pode fazer, como garantir a coesão social, garantir neste caso os apoios a empresas que foram objeto de choques para os quais não estavam preparados, como o Turismo. O Estado tem aí um papel essencial, mas depois não podemos chamar de volta o papel tutelar e absoluto do estado porque o mercado falhou. Não, o Estado tem certamente um papel importante, em termos de promover essa estratégia, mas o seu protagonismo será muito mais em termos de congregação de capacidades, de competências, de vontades, numa missão partilhada que envolva a cooperação entre os setores público e privado.

Nesta linha de raciocínio, o Estado deve continuar na TAP?

Aqui falo enquanto economista, ainda por cima do Norte. Quando o anterior governo resolveu aumentar a sua participação para 50%, e nas condições em que o fez, fiz umas declarações que causaram algum incómodo, disse há aqui um risco de que o estado venha a desempenhar o papel de idiota útil ou de rico útil, põe lá o dinheiro e não manda em coisa nenhuma. Aparentemente, agora é o que se está a concluir, diz-se que se deve lá pôr mais dinheiro.

Acho que a TAP também não terá sido tão mal gerida até à altura da crise, como às vezes se faz querer, porque a companhia foi apanhada com um plano de investimento muito grande que lhe permitiria posicionamento e, tanto quanto sei, tinha associada uma rentabilidade operacional até significativa.

Mas continua a fazer sentido viabilizar a companhia?

Nas circunstâncias atuais acho que continua a fazer sentido que o estado se proponha a salvar a TAP, em condições que eu discutiria, preferiria não um empréstimo, mas uma participação no capital com presença na gestão. Fazendo-se isso, assume-se que a TAP tenha um desígnio nacional, que pode ter custos económicos. Ou seja, nem todas as rotas seriam aquelas que uma empresa privada escolheria.

O que a TAP não pode ser é uma empresa com metade do capital público, que depois se comporta como uma empresa privada. Assim, tem lá um acionista útil mas sem qualquer eficácia.

Como vê o recurso sistemático de António Costa a independentes ou colaboradores externos para gerir dossiers sensíveis no governo? O exemplo mais recente é António Costa Silva.

Não vejo mal. Se há competências e se ele identifica que as mesmas não estão no partido ou nos partidos que o apoiam, é natural que se vá buscar quem tem essas competências. Os partidos já são acusados muitas vezes de monolíticos, acho que essa abertura até é de saudar.

Concorda com a saída direta do Ministro das Finanças para o Banco de Portugal?

Há várias nuances nesse processo. Acho que podemos aprender com as experiências. A prazo pode-se estabelecer uma espécie de período de nojo nesse processo de transição. Não havendo essa legislação, fica tudo muito dependente da vontade das partes. Competirá ao ministro Mário Centeno avaliar eventuais incompatibilidades, conflitos de interesses; e ao próprio governo, que fará a proposta, se também acha que, não havendo essas incompatibilidades legais, apesar de tudo é uma boa prática fazê-lo.

Somando as duas considerações, preferia uma outra solução. Mas não ficarei escandalizado, se solução acabar por ser Mário Centeno no Banco de Portugal.

A médio-longo prazo, a economia portuguesa está preparada para responder a novos desafios?

É preciso conjugar duas condições: estruturais, de fundo, e conjunturais, mais ligadas a este processo de reabertura. O que estamos a admitir é que a reabertura é feita e com sucesso suficiente para que o país possa pensar no dia depois de amanhã.

Numa economia como a portuguesa, relativamente pequena, seria uma ousadia e irresponsável pensar que podíamos definir o nosso caminho à nossa vontade, mesmo que tivéssemos muitas condições. Esse é um dos equívocos de países como a Holanda ou como a Áustria, que não percebem que a cooperação internacional é essencial e que se países como a Espanha, Itália, Portugal e mais alguns falharem, isso vai alterar o contexto deles.

Admitindo que o programa franco-alemão avança como apresentado, esta bazuca será suficiente?

Este esforço que a União Europeia está a fazer é muito promissor, no sentido de repor a solidariedade e a Cooperação internacional no centro das decisões internacionais. E se for bem-sucedida, estou confiante que a UE pode vir a ganhar ou retomar o papel preponderante que teve durante alguns anos e que eu acho que é um papel decisivo, nomeadamente se se mantiverem lideranças tão erráticas como a que existe hoje nos EUA, que é perigosa, no sentido que deixa uma vaga que pode ser ocupada por países que não têm nada a ver com a democracia.

Olhando para a economia portuguesa, e a sua evolução ao longo dos últimos anos, não foram aprofundadas competências complexas, sofisticadas. É o caso do Turismo e da Restauração, que teve um papel essencial na correção dos desequilíbrios externos, mas tem vulnerabilidades várias, algumas agora patentes.

Em qualquer dos casos, Portugal tem as competências mais do que suficientes para se poder abalançar a desafios mais ambiciosos. Aparentemente, o que nos poderá faltar será capacidade de organização.

Portugal precisa de bons gestores?

Temos que ter uma motivação comum, respondemos bem sob pressão. Respondemos bem, por exemplo, aos desafios da troika, aparentemente respondemos bem à pandemia. Seremos capazes de responder a esses desafios quando não houver pressão? Ou pelo contrário, tenderemos a desperdiçar capacidades e competências?

Por outro lado, temos um défice tradicional na capacidade de nos organizar-mos para a cooperação e, por outro lado, temos também dificuldade, muitas das vezes, em gerir para fazer a diferença, para mudarmos. Tendemos a ser, em condições normais, muito acomodatícios. A questão é como se pode motivar estas mudanças, alterações de comportamento, até porque algumas delas vão ser necessárias, o contexto internacional vai mudar o suficiente para que torne essas mudanças inevitáveis. Mudanças inevitáveis por arrasto são sempre menos benéficas ou até perversas do que mudanças antecipadas e que nos ponham no pelotão da frente.

Podemos vir a ser penalizados pelo atraso na implementação das reformas estruturais? Afinal, esta ajuda chega com condições…

Devemos olhar para essas alterações por modo próprio. Se formos capazes de ler bem as tendências, de desenharmos uma estratégia informada, temos a certeza que estará necessariamente alinhada com algumas das prioridades que têm vindo a ser anunciadas. Nomeadamente, a sustentabilidade (a estratégia verde) ou as competências digitais.

O que vier de fora há-de ser um fermento adicional para que o bolo se componha mais depressa. Mas não podemos ficar à espera que de fora nos digam que é preciso fazer isto, nós temos que jogar neste caso por antecipação.

Depois desta crise, acabou a economia como a conhecemos?

Acho que há coisas que vão mudar. Há aqui forças de tensão que se manifestam muito, sobretudo em termos da globalização. Há quem defenda que a globalização acabou, eu acho que não vai acabar. Há instituições, experiência, tradições que são positivas e que criaram uma espécie de lastro para que não recuemos em termos absolutos. Além do mais, há a história, que nos diz que as tentações de nos fecharmos sobre nós próprios e de rompermos com a cooperação internacional dão maus resultados. Todo o período a seguir à I Guerra Mundial e até à II Guerra Mundial é um período de retrocesso relativamente à abertura das economias, e que acabou nos conflitos mundiais e no empobrecimento de muita gente, na perda de produto e de riqueza.

A globalização terá de ser reconfigurada. As empresas vão tentar diversificar mais as fontes de abastecimento, eventualmente vão tentar diversificar os mercados e haverá novas oportunidades para países que tenham uma maior proximidade a centros importantes de decisão (é o nosso caso, relativamente à União Europeia).

Não tenho dúvidas que nesta nova economia vai haver um protagonismo acrescido do estado, pelo menos no curto prazo, em matérias que vão desde a criação destes planos, o redesenho dos incentivos e, sobretudo, o papel importante do estado, por exemplo, na promoção da inovação.

Essa ideia do fim da economia mundial como a conhecemos é um bom slogan, mas é excessivo.