Ainda não lhe sabemos o nome, mas mesmo antes de morta, a sua morte já começou e a história dela veio nos jornais.
A PSP conta que a mulher foi agredida com “violência extrema”, na farmácia onde ambos trabalhavam. Aconteceu na quarta-feira, no Porto. O criminoso tem 54 anos e é farmacêutico. Está localizado. Segundo as testemunhas, a fúria de socos e pontapés fazia parecer que estava "possuído”. Não sabemos muito mais. Mas já sabemos o suficiente para, se ela aparecer morta um dia destes, ninguém poder dizer que “não sabia”.
Voltando aos factos: chamado o socorro ela seguiu para o S. João e acabou internada. Ele, cobarde, espancou e fugiu. Foi detido, nessa mesma noite, na Maia, à porta de casa. Depois de agredir a polícia também ele precisou de tratamento no mesmo hospital. A notícia não diz se ela o viu chegar, ou se acabou estacionado na maca ao lado, só informa que ela, que tinha ficado internada na sequência da agressão, de madrugada, assinou um termo de responsabilidade e abandonou o hospital. Parece uma medida prudente para quem está refugiada num local onde pode receber visitas inesperadas.
Na sexta-feira o agressor devia ser presente ao juiz. Não nos contam mais, nem sequer se compareceu ou o que disse o juiz. Mesmo assim, o que sabemos basta.
Sei pouco de leis. Ainda menos das vantagens do garantismo do regime. Tendo sempre a focar-me nas desvantagens. Culpa seguramente minha. Mas o que sei da vida diz-me que um homem que faz isto, na área de atendimento de uma farmácia, à frente de três testemunhas, e à noite volta tranquilamente para casa deixando a mulher internada, ou está louco ou está, pelo menos, seguro da sua total impunidade.
Como não sei se compareceu ao juiz nem o que esse juiz decidiu – e temo que o agressor não tivesse ainda registo criminal (parece que é frequente nos agressores domésticos!) – tenho medo que possa ter saído com aquelas medidas vagas, de termo de identidade e residência, “proibido de contactar com a vítima”. Como não é certo que ele lhe largue a porta, o mais provável é que a mulher tenha, desde esta semana, passado à condição de pessoa sem abrigo. Uma espécie de refugiada, sem pedido de asilo, alojada algures até que ele a encontre.
Parece que se decidiu dar maior proteção às vitimas que apresentem queixa nas 72 horas seguintes. Três dias. Isto pareceu bem aos especialistas reunidos de emergência para tratar do pico de violência a que estamos a assistir entre uma série de outras medidas saídas da reunião desta quinta-feira, entre Governo, Ministério Público, a Equipa de Análise Retrospetiva de Homicídio em Violência Doméstica (EARHVD) e a Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género (CIG).
A mim, parece-me muita gente para decidir tão pouco (tempo), hão-de desculpar. Neste caso concreto, e para cúmulo, trabalhando na mesma farmácia e às ordens do agressor, desde quarta-feira a mulher estará provavelmente sem casa e sem trabalho, vagamente à mercê da reconciliação forçada, que tantas vezes acaba por levar as vítimas de regresso ao inferno da coabitação com o agressor. Depois a vida é mais curta ou mais longa, dependendo da vontade do homicida. Só quando este acaba o trabalho que dá origem à primeira queixa policial é que ficamos finalmente a conhecer o nome da vitima. É o nome da morta.
Esperemos que desta vez não seja assim. Se for, que publiquem também o nome dos cúmplices dentro do magnifico sistema de justiça que não tem sabido proteger estas mulheres. Mesmo que sejam juízes. E não vale a pena dizer que as prisões já estão sobrelotadas. É sempre possível arranjar mais um ou outro lugarzinho em Évora para acolher estes assassinos pré-anunciados.
Se se provar que são apenas loucos a precisar de auxílio, ou inimputáveis a precisar de algum resguardo da vida social, criem-se os respetivos lugares nos hospitais-prisão ou nas alas psiquiátricas de alguns hospitais desativados. Mas não os deixem andar à solta, por aí, até concretizarem as ameaças mil vezes proferidas. Na esperança vã de que não se concretizem. A infernizar a vida de mulheres e companheiras, afirmando inocentemente que nada o faria esperar, como se subitamente estivessem "possuídos”.
Não me interessa o que fez ou se fez aquela mulher alguma coisa para desencadear a fúria daquele homem. Percebam, por favor, que nesta fase do campeonato da violência doméstica, não há, não pode haver, atenuantes.
E, já agora, se um dia ela perder a cabeça e ele aparecer, inesperadamente, no lugar do morto, abram uma exceção: pode afinal ter sido em legítima defesa da sua morte lenta e dolorosa. Pelo menos, percam tempo a ler o princípio da história. Consta da página 13 do “Correio da Manhã” desta sexta-feira.