Garanto que não tenho segredos a esconder. Os meus passos podem ser escrutinados. Só tenho medo do medo. Do medo, acreditem que eu tenho mesmo muito medo. Não quero ter um número escrito no braço. Não quero ter um chip na pele. Não temo ter um polícia, sem mandato, a entrar-me, pela casa dentro, para contar quantos comensais tenho à mesa (normalmente são sete, mas muitas vezes são onze entre pais, filhos e netos).
Jantar é um direito. Não vou abdicar dele, mas reconheço que já percebi, a minha sala não o permite. Não voltaremos a jantar ao mesmo tempo. Vamos jantar por turnos: cinco primeiro e cinco na ronda seguinte. Rotativamente, um vai comer na cozinha. Os senhores agentes estejam tranquilos, não precisam de nos visitar. Mesmo se derem por sinais de festa. Mas instalar aplicações não instalo.
Por outro lado, não me indignarei se ignorando a sabedoria popular (“a boda e a batizado não vás sem ser convidado!”) se aplicar uma exceção para os guardas. Não me custa que fiscalizem se, em vez do máximo de 50 convidados estão lá 100, o que, além de ilegal, constitui ameaça grave à saúde e felicidade dos noivos. Ninguém quer ver a família e amigos hospitalizados no regresso da lua de mel. Se o bom senso prevalecer nada a opor à visita das autoridades. Mas obrigar os convivas a instalar a aplicação é que já me parece “abuso de autoridade”.
Um Governo que gasta milhares de milhares de milhões na TAP e Novo Banco, e continua a não ter uma estratégia para evitar notícias como a desta quinta-feira (em Évora lar de idosos com 97 infetados!) É um Governo sem moralidade para ir gastar dinheiro a oferecer telemóveis aos portugueses desses que possam trazer a aplicação (mantenha a Covid longe…) já instalada. Mas, mesmo que tivessem essa ideia peregrina, eu não queria. E senão que igualdade é essa que impõe aos portugueses, com dinheiro e bons telemóveis, uma aplicação, e deixa os pobres sem essa “importantíssima” arma de defesa?
Não quero. Não tenho dinheiro para pagar 500 euros de multa diária, mas disso já não tenho medo. Venham as multas. As leis que nos envergonham não são para cumprir. Venderam-nos a ideia de que a dita aplicação era de instalação meramente voluntária. Tudo bem. Obrigatória não aceito. Além disso, não gosto que me mintam. Deixem-na como está. Quem quer descarrega-a. Quem não quer, não descarrega. Eu não quero. Falo por mim. Se outros acharem bem, usem-na. Não quero ficar com o ónus de contribuir para que não se salve a vida de alguém.
Não gosto de ter um detetor de “localização de contactos” em permanência comigo. Nem em contexto laboral, nem entre funcionários públicos, nem nas escolas e universidades, nem em contexto nenhum. Acho coisa de má memória. Tipo caderno dos agentes da PIDE. Polícia que também achava o comunismo (e outras ideias subversivas, como as da doutrina social da Igreja) perigosas “doenças contagiosas”, que urgia erradicar da sociedade. Aliás recorria ao internamento compulsivo e ao isolamento obrigatório dos “doentes” detetados ou dos seus contactos “suspeitos” não fossem também contraírem esses vírus. No mínimo, colocava-os em quarentena.
Se querem passar do estado de calamidade para o estado de emergência, passem. Se querem limitar direitos liberdades e garantias em nome da saúde pública. façam-no. Há coisas que é preciso assumir antes, para agir depois. A Democracia tem regras e não as podemos “suspender”. Acredito que até um presidente hipocondríaco não deixará de nos proteger desse passo em falso. É preciso ter vergonha. Eu sinto vergonha alheia. Por ações e omissões como esta.
Agradeço o cuidado, mas não quero. Nem que me ofereçam. Mesmo uma aplicação embrulhada num telemóvel de última geração. Não quero que o ofereçam aos meus filhos e netos. Será a ideia mesmo essa? Alguém teve a ideia de em vez de comprar Magalhães comprar telemóveis para distribuir, nas escolas, com a falsa desculpa de que está a proceder à “digitalização” do projeto “escola segura”? Quem sabe a União Europeia ainda vai pagar às grandes operadoras, parceiras em novo negócio. Brinco? Não sei. Já nada nos espanta. Em matéria de negociatas já vimos de tudo.
Perdoem se exorbito. Desculpem lançar a suspeição. Mas se há alunos pobres, sem telemóvel, ou com aqueles básicos onde não cabe a aplicação e ricos que tem aparelhos de última geração como os obrigar a todos a usar um equipamento idêntico? Ou será apenas mais uma forma de garantir que num país tão “webizado” uma app tão cara não passou de um “flop”?
Para mim é uma questão de coerência. Defendo que como já existe em muitos países as novas tecnologias fiquem à porta da sala de aula exceto quando servem para aprender e ensinar. O espaço de ensino é sagrado. Exige concentração. Os alunos não precisam de controle a tempo inteiro. Devem ser autónomos e responsáveis. Devem ter o telemóvel “q.b” segundo a respetiva idade e necessidade. O tempo de estudar não deve conflituar com o tempo para “jogar” e menos ainda aceito que devam passar a usar pulseira sanitária eletrónica.
Os jovens, em vez de andar de cabeça baixa, precisam de aprender a usar a cabeça para a manter erguida e os olhos para contemplar o mundo e não para os fixar no ecrã, sobretudo nas escolas.
Tente António Costa impor a obrigatoriedade de uso de uma aplicação, como esta, e eu retirarei as devidas consequências: já estaremos em Estado de Emergência porque caiu subitamente sobre nós a pior das calamidades: a perda da liberdade e o início da uma ditadura sanitária.
A história ensina-nos que todas começaram assim: com o embalo e a aprovação de um povo temente, reverente e sobretudo ignorante e obrigado pouco consciente dos seus direitos. Cheio de medo. É este o nome do vírus? Ou ainda estamos a falar do Covid?
Não podemos contemporizar com uma sociedade assim que coloca os seus velhos em “solitária” encerrados em celas de isolamento profilático, mesmo que a prisão seja domiciliária, sem contar com os que de entre eles se encontram já condenados a prisão perpétua , num corredor de morte em solidão, vendo o fim minado por extremo e inexplicável sofrimento, numa tortura que a sociedade tolera e contra a qual ninguém se indigna.
Para cúmulo uma sociedade com um Parlamento que tem a lata de ir debater a eutanásia na próxima semana, sem rebuço e sem vergonha de antes não debater as verbas orçamentais exigíveis para resolver um problema urgente que lhes devolveria a dignidade e a vida envolvendo muito menos dinheiro do que o Orçamento tem destinado ao Novo Banco e à TAP?
Vale a pena ler a última nota da Comissão Nacional Justiça e Paz sobre o que se espera dos políticos em relação aos lares de idoso (o texto divulgado esta quarta-feira) e já agora ler também a par da carta aberta dos ex-bastonários enviada à ministra da saúde. Boas leituras de fim-de-semana.
Só vão pelo caminho certo os que o escolhem e sabem para onde vão e também os que não sabem nem o caminho nem para onde querem ir. O Governo não tem dúvidas de que vai pelo caminho certo. A certeza vem-lhe de qual dos dois motivos?