Voltemos ao tema. Há um ano, quando escrevi sobre o caso do bebé abandonado no lixo, acabei o meu texto com uma certeza: a mãe tinha de ser punida pela lei. O estado de direito tinha de sinalizar que aquele acto é intolerável. Não há aqui relativismos legais, e a pobreza não é álibi. Só que isto é só o começo da conversa, não é o fim. A sentença (nove anos de cadeia efectiva) não resolve moralmente o assunto. Pensar que esta pena de cadeia resolve o problema é uma atitude típica de Pôncio Pilatos.
Há dois pontos que me inquietam nesta sentença. O primeiro é a desproporção em relação a outros crimes passionais. Compare-se os noves anos de cadeia efectiva desta mãe com as penas suspensas dos homens que tentam matar e violar as mulheres, ex-mulheres, namoradas e ex-namoradas. Procurem nos jornais as histórias de violência doméstica. São centenas. Homem de 62 anos agride violentamente mulher durante 40 anos; na última agressão, ela fica em estado muito grave no hospital. Pena? Três anos. Homem viola a mulher durante onze anos. Sentença? Pena suspensa. Homem tentou matar a mulher. Sentença? Quatro anos. Homem ameaçou a mulher com uma motosserra. Sentença? Pena suspensa. Perante esta assimetria legal, não é descabido colocar a questão: se tivesse sido um homem a abandonar a criança no lixo, a pena teria sido mais leve? Sou eu o único a ficar com a impressão de que as mulheres são desprezadas como vítimas e sobrevalorizadas como agressoras?
O segundo ponto que quero salientar está relacionado com a questão anterior à sentença: a rapariga fez aquilo depois de ter sido desumanizada por anos de miséria e droga. Vai a prisão humanizá-la? Vai ela recuperar a sua humanidade perdida na prisão? Não vai. Temos nós instituições capazes de re-humanizar pessoas que foram embrutecidas por anos e anos de miséria? Não temos, pois não? Estão somos todos Pôncio Pilatos perante este caso e perante todas pessoas miseráveis que tomam decisões erradas no desespero. Olhe-se, por exemplo, para aquela senhora que durante a quarentena matou o filho autista. Esta mulher é culpada, sem dúvida, fez uma escolha horrível, mas fez essa escolha num quadro de desespero que é inconcebível para a maioria das pessoas. Falta, portanto, essa empatia pelo "inconcebível" que é o livre arbítrio na pobreza.