Terminei todas as minhas crónicas, desta semana, falando do tema da eutanásia. Mesmo quando falei do apego de António Costa ao poder ou da novela das relações amor ódio do ex-parceiro de “geringonça”. Tudo para acabar, hoje, finalmente, a falar finalmente dela.
A razão é simples, nada deveria desviar a nossa atenção do mais importante e aproxima-se o que pode constituir um salto civilizacional para um grande buraco negro. Muito mais perigoso do que qualquer crise política conjuntural ou mesmo da evolução da pandemia que nos pode lançar na pobreza pela próxima década e nos ameaça como nada mais nos apavorou no último século, a nossa forma de vida e o nosso bem-estar.
A legalização da eutanásia cuja discussão se reinicia hoje, com o debate da petição cidadã a favor da realização de um referendo, é um corte sociocultural muito mais forte e muito mais perigoso do que qualquer das nossas preocupações do momento. Choca-me a falta de oportunidade do debate num tempo em que o medo nos persegue e tem, por base, a chegada traiçoeira da possibilidade de uma morte sem anúncio prévio.
Repentina, dolorosa, incapacitante, fulminante, dessas que não esperávamos de todo sem distinção de idade ou estatuto social. Uma doença desconhecida que, num caso se confunde “com uma gripezinha” e, noutro, pode derrubar um atleta na mais perfeita forma física. Uma doença que ao fim de quase um ano nos continua a atormentar e a deixar-nos a navegar à vista sem certezas sobre quase nada.
Sabemos apenas que são os velhos, e sobretudo os mais velhos, os que se encontram neste momento mais vulneráveis. E é bonito ver como uma sociedade em peso reagiu em bloco para os salvar. Mesmo que só agora tenhamos despertado para a peste de muitos lares ilegais, para o abandono em que se encontram “armazenados”, aqui e ali, foi também ocasião de descobrir os heróis que , sem meios humanos, nem materiais, são os seus cuidadores dispostos a dar literalmente a vida por eles.
Foi incrível ver centenários a saírem de cuidados intensivos aclamados por equipas médicas que não olharam à sua esperança média de vida, nem se pouparam a esforços para lhes oferecer a qualidade de vida a que têm direito até final. E mesmo quando o final só pode estar mesmo, mesmo, muito próximo, não caíram na tentação utilitarista de não os tratar com o mesmo empenho e esperança de um jovem de 20.
Foi demais? Não creio. Um dispêndio de recursos escassos, desproporcional? Não. Uma prova de qua a vida (qualquer vida!) não tem preço. É literalmente sagrada. E o que vem dizer-nos a eutanásia? Exatamente o oposto. Quebrando esse tabu civilizacional distingue entre as vidas que merecem e não merecem ser vividas.
Se um homem pode (para além do suicídio) exigir ao SNS que o trate ou o mate está a induzir no sistema uma lógica perversa porque, quem tem o poder de morrer a pedido, passa a ter, de certa forma, o “dever de pedir para morrer”. Coisa bem diferente de exigir que não lhe prolonguem artificialmente a vida e o sofrimento para além do limite natural da sua própria vida.
Todos nós temos o direito a morrer, quando a morte chega e não temos, nem por excesso de zelo do sistema, nem por falta de compaixão dos que nos rodeiam, o dever de prolongar a vida, menos ainda se em sofrimento fútil e desmesurado.
A experiência holandesa e belga não nos permite, 20 anos passados da legalização, meter a cabeça na areia e continuar a pensar que uma vez oferecida a morte hospitalar, numa espécie de carta de soluções de tratamento a sociedade não vai adotar uma atitude que gradualmente banaliza a morte.
Uma mentalidade coletiva que começa por se legitimar na exceção vendida como compassiva com o sofrimento alheio para se agigantar, depois, numa subtil pressão sobre todos os que sofrendo com a própria debilidade da velhice começam a não se sentir no direito de “pesar” aos outros, à família e “à sociedade “, acabando por decidir, no uso da sua plena “liberdade”, por um fim que, legitimamente, nunca quereriam, fosse outra a cultura social dominante.
Mesmo nos casos belga e holandês é bom reconhecer: a lei só foi debatida e aprovada depois de concluída a rede de prestação de cuidados continuados e paliativos capaz de garantir a todos uma morte natural, sem sofrimento extremo e dignamente acompanhada.
Ainda assim duas décadas bastaram para que caíssem todas as barreiras das leis iniciais. Tine Nys foi eutanasiada apenas por estar deprimida e, embora os três médicos envolvidos na sua morte tenham sido condenados por errarem na decisão de autorização, não lhe devolveram a vida. Doentes de alzeimer (alguns em fase avançada), ou parkinson, crianças e adolescentes, são já abrangidos pela lei. O estatuto de objetor de consciência nos serviços estatais é cada vez mais raro e cada vez mais difícil de acionar pelos profissionais sem riscos graves para as respetivas carreiras.
Na Holanda, ainda mais do que na Bélgica, o fim da vida a pedido tornou-se uma espécie de etapa da vida social como o nascimento. Festejam-se ambos, quebrando o tabu da irreversibilidade da morte.
E por cá? Exatamente quando o SNS está longe de conseguir prestar os cuidados esperados, se afoga em défices de recursos materiais e humanos, se mostra incapaz de uma organização minimamente equilibrada e justa mesmo do ponto de vista espacial, não tem montada uma rede de cuidados primários e muito menos um mínimo de cuidados paliativos, qual a pressa de avançar numa lei que, além de dividir os portugueses, foi rejeitada em 2018?
É simples, a pressa bloquista em alterar a sociedade numa espécie de revolução cultural contra-natura e o seguidismo socialista não desistem de a trazer de volta para que não se perca a maioria conjuntural que vai permitir aprovar a lei, dentro do semi-silêncio envergonhado entre um Orçamento do Estado em estado de calamidade e um país mergulhado na pior crise económica do século.
E neste contexto de que serve um referendo, a algo que por definição não depende da vontade da maioria (seja ela popular ou parlamentar)? Serve apenas para fazer ecoar a voz do povo. Forçar o debate e evitar que passe pelos pingos da chuva, uma lei iniqua. Em rigor, não servirá provavelmente para mais nada. Mas isto já não é pouco. E só se consegue, se a própria proposta de referendo passar. Ou seja, se o mais improvável dos cenários acontecer.
Amanhã saberemos o que a consciência dos 230 eleitos pelo povo decidiu. Perceberemos se os próprios preferiram substituir-se à voz do povo que os elegeu. Seja qual for o desfecho deixo uma sugestão preciosa: leiam um livro pequenino de Miguel Oliveira da Silva sobre a eutanásia em Portugal: quem tem medo do referendo? Editado pela Caminho. E tirem as vossas próprias conclusões. Vale a pena.