Numa altura em que a comissão parlamentar de inquérito (CPI) à Caixa Geral de Depósitos (CGD) chega a conclusões que coloca a crise como culpada, e única responsável, do buraco que o banco público criou nos últimos anos, o jornalista Diogo Cavaleiro escreve “Caixa Negra” (ed. Oficina do Livro), um livro que pormenoriza os últimos 17 anos da vida do banco público.
Na apresentação do relatório preliminar da CPI, o relator Carlos Gonçalves, deputado socialista, queixa-se da falta de fontes de informação e conclui que foram cometidos “erros de análise” na concessão de crédito, mas retira da equação possíveis pressões políticas para aprovação desses empréstimos por parte dos sucessivos governos desde 2000.
Já em “Caixa Negra” a abordagem aos problemas é vasta. O autor quis escrever uma história que não fosse cronológica. São os temas-chave do banco público a orientar a narrativa.
“Havia vários temas que não podia falhar, desde a privatização, que está sempre em cima da mesa, as lutas políticas, as participações em empresas, o facto de a Caixa ter determinado aquilo que foi o destino de muitas empresas portuguesas, e também os financiamentos polémicos e concedidos”, afirma Diogo Cavaleiro, que é jornalista no “Jornal de Negócios”.
Comecemos pela forma como acaba o livro. A conclusão é de que a CGD era muito mais do que um banco e isso teve um custo. O que é que isso quer dizer?
A Caixa não era simplesmente um banco, não estava apenas nas operações tradicionais. Chego a usar o termo “império” porque era um banco que tinha demasiados tentáculos – estava presente na área seguradora, na saúde, tinha várias participações em áreas distintas da sua área de negócio, tinha participações relevantes em empresas...
Mas isso acontece porquê?
Muitas das coisas são resultado de evoluções históricas. Há várias participações financeiras, como a da Cimpor, que resulta de um crédito. O banco ficou com uma participação relevante numa cimenteira devido à execução de um crédito. Há outras em que está desde o início da empresa, como na NOS.
São os governos a exercerem poder na economia através da Caixa?
Exacto, muitas vezes isso deve-se ao facto de a Caixa ser um instrumento para manter poder naquilo que se chama centros de decisão nacional. E era também uma garantia de que o Estado entrava em determinados sectores e seria um estabilizador dessas actividades.
Diz-se frequentemente que a Caixa é um banco muito politizado por ter o Estado como accionista. É possível ter um banco público sem ser assim?
Uma das conclusões da comissão de inquérito de hoje [terça-feira, 4 de Julho] é a de que não havia pressões dos governos para a concessão de financiamento e outra das conclusões é de que o Estado se devia envolver na vida da Caixa e definir o caminho. É um equilíbrio difícil entre o accionista Estado definir o que quer e a gestão cumprir o que o accionista deseja. Mas passa-se o mesmo nos privados.
Foto: Joana Bourgard/RR
A troika tinha um programa draconiano para a CGD que está em linhas gerais a ser aplicado. Há redução de dependências e há quase menos 18 mil trabalhadores quando comparamos com 2010. As instituições europeias tiveram uma acção tão dura noutros bancos públicos europeus?
Olhando para Portugal apenas, temos outros bancos que precisaram de ajuda externa em 2012 e que tiveram de fazer essas reduções. Os números são mais impressionantes, nomeadamente na redução de trabalhadores, por duas questões: a CGD teve de reduzir pessoal e como houve emagrecimento de participações, com a área de seguros a ser vendida, esse pessoal também abandonou o grupo Caixa.
Quando se deixa de ser um império isso afecta o número de pessoal.
Há hipótese de voltarmos a ter bancos que sejam mais do que bancos, algo que tão maus resultados teve no passado devido à fluidez entre os sectores financeiro e não financeiro?
Acredito que sim. A regulação, pelo que tenho visto nos últimos anos, é mais reactiva do que activa. Hoje temos o excesso de regulação de que os bancos se queixam e isso deve-se à crise que se viveu. Não querendo ser pessimista, há-de chegar a altura em que se vai pensar que há um excesso de regulação. Vamos voltar a um modelo anterior e haverá um braço financeiro que leve a um sector empresarial.
Então aprendemos pouco com estas crises?
O que as crises nos ensinaram é que há novas formas de entrar em crise. E na banca isso pode voltar a acontecer.
Como é que um banco que parecia ser o fiel da balança do sistema chega ao ponto em que os contribuintes tiveram de ali pôr pelo menos 8 mil milhões de euros?
Quis perceber exactamente isso. Apesar de nos últimos anos ter sido preciso uma maior quantidade de dinheiro, a verdade é que os aumentos de capital foram sendo feitos ao longo do tempo. Mas se antes havia retorno dessas injecções com dividendos, depois de 2010 temos uma crise internacional e nacional que impediu que isso continuasse. Agora há muitas razões para que podemos olhar como causas para este valor.
Quais são as maiores?
Há diversas operações da banca de investimento que correram mal, nomeadamente em Espanha, que, além da crise internacional, também sofreu com a crise imobiliária. Acabou por afectar muito a situação da Caixa. Houve depois financiamentos da promoção imobiliária que levantaram a necessidade de criar provisões com receio de que essas operações fossem imparidades.
A discussão sobre a privatização do banco público tem estado sempre presente. Apesar de o tema estar mais esbatido devido ao Governo PS, o debate está longe de estar encerrado?
Está longe. Este governo, nas várias intervenções sobre a Caixa, faz sempre questão de dizer que com a capitalização negociada com a Europa, em 2016, conseguiu manter a Caixa 100% pública.
Agora, na comissão de inquérito, o relator diz que há todo o interesse em manter a Caixa em mãos públicas. A ideia está sempre em cima da mesa. E agora com as indicações externas, a Caixa tem uma gestão mais privada. É um banco comercial como os outros.
O actual Governo tem sempre a necessidade de fazer esse sublinhado de que a Caixa é um banco público, porque as decisões sobre a banca não são agora só tomadas a nível nacional. A Europa está envolvida em todas estas decisões.
Escreves que a Caixa é hoje um banco comercial igual aos outros, no contexto europeu. Que diferença faz então hoje haver um banco público?
A Caixa deve encontrar um caminho distintivo e deve ter um papel diferente dos outros. Neste momento, temos o presidente da CGD, Paulo Macedo, que já fez várias declarações em que defende que não vale a pena estar em sítios em que os outros não estão se não é rentável, e aí levanta-se a questão: porque é que a Caixa é diferente ou não. Hoje em dia a Caixa ainda tem uma percepção diferente por parte das pessoas, por ser um banco público leva as pessoas a pensar que aí os depósitos estão mais seguros.
Paulo Macedo diz que um dos problemas da concessão de crédito na Caixa foi estar demasiado centrado na área comercial e não na área de risco. A mudança resolverá o problema?
Penso que o que Paulo Macedo quis dizer é que antes havia um olhar demasiado comercial para os créditos concedidos.
O que é que isso quer dizer?
Quer dizer que está nas mãos dos comerciais, dos vendedores, que os incentivos são diferentes e que o que pode interessar é vender e não olhar tanto para os riscos associados aos créditos. Acho que a perspectiva da actual gestão é que o risco dos créditos seja o ponto essencial. O crédito é concedido mediante se a Caixa pode ou não comportar esse risco. Mas não sei como é que esse equilíbrio é conseguido.
A CGD é hoje mais conservadora a dar dinheiro? Se sim, como é que isso se contabiliza com a missão de ser o banco das PME, um banco diferente dos privados?
Essa é uma questão com vários anos, em 2013 já se falava disso, veiculando a ideia eterna de que os bancos estão disponíveis para emprestar, mas que não há é procura qualificada. É uma equação que está por resolver.
Depois de 2011 e do pedido de resgate em Portugal, em que os banqueiros, um a um, foram à televisão pedir a vinda da troika, o sector tem-se descredibilizado. Na percepção popular deixaram de gozar da respeitabilidade que tinham. Como é que isso é vivido pelo sector e como se reflecte ou não em perda de influência politica?
É uma questão difícil e que tem a ver com a evolução cíclica da economia, os jogos de poder vão sempre oscilando muitas vezes devido ao interlocutor. Deixou de haver nomes historicamente fortes na banca e isso há-de abrir margem negocial para os governos. Mas penso que os bancos continuam a ter uma função na economia e acabam por ter força.
O jornalismo económico tem revelado alguns dos escândalos da banca em Portugal, mas estes casos vêm de antes de 2008, muitos deles, e nessa altura houve também na imprensa nacional um endeusamento de figuras de proa do sector bancário. O jornalismo já fez esse exame de consciência?
Acho que muitas das notícias que deram origem aos buracos que hoje vemos já tinham sido dadas. O endeusamento pode ter acontecido parcialmente, mas a verdade é que a notícia estava lá. Pode haver é uma falta de percepção da importância que esta ou aquela notícia tinha.
Mas é verdade que muitas notícias passaram ao lado do cidadão médio. Vale do Lobo começou logo a ser noticiado, durante o licenciamento, mas a verdade é que o projecto avançou.
A Caixa, depois do recente recapitalização, encara desafios enormes. Macedo diz que não vem tratar do passado, mas também não vai escondê-lo. O que é que o presidente da CGD quer dizer com isto e o que é que na tua óptica encerra o futuro do banco público?
O que Macedo quer dizer é que a Caixa tem uma herança, sabe que há investigações que estão a correr, mas não é isso em que vai centrar o seu mandato. Ele diz que vai executar o plano definido e, entretanto, se vierem coisas do passado, não as vai esconder.
Os grandes desafios para o futuro passam pela auditoria que está a ser feita e os processos começados pela comissão de inquérito que podem passar pela divulgação dos maiores créditos. Mas se isso acontecer, o sistema financeiro deparar-se-ia com uma questão sistémica, que é os clientes serem identificados. Isso pode ser determinante.
Outra questão é em que é que a Caixa se vai diferenciar dos outros bancos depois da reestruturação. Penso que se tem de estar atento ao acompanhamento europeu, do regulador, e da Direcção-Geral da Concorrência.