Fala-se muito de parentalidade. E ainda bem. Ter filhos hoje em dia é mais difícil do que era no passado. É mais difícil na quantidade e na qualidade do trabalho parental. Estamos mais horas com os miúdos (não há rua) e, durante esse tempo, exige-se mais aos pais no conhecimento da criança. E, para um homem que se empenhe a fundo no papel de pai, as coisas são ainda mais complicadas, porque não há modelos de comportamento, não há referências no passado – o homem estava fora a trabalhar, a mulher estava em casa. Além disso, as mães da minha geração organizam-se em grupos, falem entre si sobre isto de ter filhos; os homens não. Sinto todos os dias que estou a andar numa floresta sem qualquer ponto de referência ou mapa.
Claro que a pandemia elevou esta dificuldade até ao ponto do desespero e do absurdo. Passados dois anos, com altas taxas de vacinados e com números de óbitos de uma doença endémica de inverno, as autoridades continuam a fechar famílias em casa. A devastação física e mental é enorme. É um preço que continuará a ser pago no futuro próximo, tal como o atraso escolar. Contas feitas, se juntar todas as interrupções, quarentenas e a escola à distância (que nunca funciona por mais que os professores se esforcem), a minha mais velha perdeu um ano lectivo inteiro. Não é brincadeira. Toda a sua primária foi marcada pelas quebras constantes no ritmo de aprendizagem. Mas ela aguenta-se, e continua a crescer intelectualmente, preenche o puzzle da escola à sua maneira e, acima de tudo, vai pensando fora da caixa.
Não deve ser a única. Não pode ser a única com este espírito. Haverá milhares assim. Se olharmos para a situação através de um ângulo optimista, esta é uma geração que será mais resiliente do que a minha. Portanto, devemos parar de falar da parentalidade e falar deles, dos miúdos que valem por si, não são meros manifestações dos pais.
Passados dois anos de quarentenas, tenho de dizer que o mérito da resistência não é meu, é das minhas filhas, que souberam resistir, que souberam transformar a maioria dos dias confinados em dias bons que contêm boas memórias, os trabalhos manuais, as pinturas, os recortes, as colagens, as experiências científicas, as hortas na varanda e na cozinha, a as brincadeiras, a forma engraçada como entraram em directo aqui na rádio e como apareciam nas reuniões da mãe, as leituras, os textos que começam a escrever. Como dizia a minha mulher na semana passada, durante a enésima quarentena, “com filhas assim, isto é mais fácil”. E esta qualidade delas não resulta da nossa educação, é delas, é intrínseco. Temos o mau hábito de ver uma qualidade ou defeito do filho enquanto merca consequência da educação dos pais. Não é necessariamente assim.
Sim, passados dois anos deste inferno em câmara lenta, deste dia que se repete todos os dias, só posso dizer obrigado às minhas filhas: elas, e não eu, transformaram o insuportável em algo suportável e, por vezes, até divertido e terno. Peço a Deus que me dê metade desta resiliência que elas demonstraram.