A contemplação da morte, e mais ainda o caminho, sofrido ou não, que nos levará a ela não é fácil para ninguém, qualquer que seja a sua trajetória de vida, as suas convicções éticas ou os seus guias morais. A morte, como a doença, é uma inescapável democratizadora: ricos e pobres, mulheres e homens, velhos ou novos, doentes ou sãos, ninguém a ela escapa, no final de um percurso por esta vida. É por isso que a consideração da eutanásia é um dos pensamentos mais complexos e dilemáticos no íntimo de cada um. Quem é que não quer, chegada a (nossa) hora, uma morte indolor, rápida, silenciosa e “santa”? Adormecer, somente, e não acordar mais? E quem é que quer chegar a ela só depois de tempos infindáveis de decadência, de dependência, de dor excruciante e de sofrimento inominável? A resposta a estas questões é óbvia. Por isso, a ideia da eutanásia pode ser uma tentação, demasiado humana, que assalta quase inconscientemente quem está perante a real perspetiva de um fim assombrado por três tenebrosos “i’s” – incapacidade, insuportabilidade e incurabilidade.
O parlamento português vai votar amanhã diferentes projetos lei que pretendem despenalizar o direito à eutanásia, muito pela pressão da maioria de forças políticas de esquerda em fazer passar uma “fraturância” que ficou pendente em meados de 2018. Ora, a apreciação parlamentar da eutanásia é um triplo abuso. Em primeiro lugar, porque ela não foi colocada na agenda da campanha eleitoral que elegeu a atual câmara, em outubro passado, e o mandato dos deputados não é imperativo, mas representativo. Em segundo lugar porque, contra os que dizem que o assunto transitou de forma implícita da legislatura anterior, a matéria é de tal maneira delicada, humana, personalista, que a hombridade e a prudência dos deputados deveriam lembrar-lhes a obrigação de a sujeitarem a referendo. Se ele não servir para isto, então não vale a pena haver referendos – ou o problema estará em um eventual referendo produzir um resultado inconveniente para as esquerdas? Em terceiro lugar porque ter escrúpulos, reservas, dúvidas; parar para pensar e exercer a prudência e o discernimento não é o mesmo que professar o “obscurantismo”, diabolizado pelos que não aceitam que nenhuma liberdade humana é ilimitada.
Por tudo isto, só ao cabo de um verdadeiro debate médico, legal, social e ético os portugueses poderão estar habilitados a dizer a quem os representa que quadro jurídico e que limites poderá o parlamento desenhar para o problema em apreço. É preciso compreender que eutanásia ou suicídio assistido são muito diferentes da distanásia (obstinação terapêutica), ou da mistanásia (o seu contrário, ou seja, o abandono de alguém à morte, por inanição ou ausência total de cuidados básicos); e que antes de falarmos disto tudo, seria imperativo falar a sério das modalidades do chamado testamento vital e das muitas e muitas carências que estrangulam os cuidados paliativos e sobrecarregam, até ao desânimo, os cuidadores informais.
Nenhuma morte é digna, pela simples razão de que nenhum ser humano deseja morrer ou partir já desta vida, que é aquela que ele ou ela melhor conhecem. Pelas convicções religiosas de muitos, por uma simples ética humanista que deveria ser de todos, é da vida, e não da morte, que as 230 almas que se sentam no parlamento devem cuidar – hoje e sempre. Cuidar da vida, no seu sentido mais amplo e humanista, consiste em perceber e em nunca esquecer que aceitar a morte fica aquém de matar; e que prolongar vidas sofridas de forma artificial e inútil não é o mesmo que abreviar artificialmente a sua duração terrena.
*José Miguel Sardica, Professor da Universidade Católica Portuguesa