Existe um sem número de preocupações éticas associadas ao desenvolvimento da vacina para a Covid-19. Desde a fase clínica da investigação todos os assuntos relacionados com a ética e integridade na investigação científica são de enorme complexidade: (1) quem recrutar para a investigação: voluntários saudáveis; pessoas que estão em fase terminal devido à doença e esta pode ser a última esperança ou pessoas doentes que não estejam em risco de vida; (2) como garantir que os potenciais benefícios prevalecem sobre os riscos de participar na investigação; (3) como garantir a evidência científica suficientemente robusta que permita a sua aprovação e muitos outros assuntos de importância ética significativa. Para além disso, como tivemos já oportunidade de sublinhar num outro artigo, os assuntos após o final de um qualquer ensaio clínico são uma vez mais de enorme complexidade ética: (1) quem priorizar para a vacinação, (2) como garantir que os sistemas de saúde não colapsam financeiramente e, por consequência, deixam todos os outros doentes em situação de extrema vulnerabilidade, (3) a toma da eventual vacina deve ser opcional ou obrigatória …
Realmente, é exactamente sobre esta última questão que hoje irei escrever. A questão sobre o facto da vacinação ser de caracter opcional ou obrigatório tem vindo a ser discutida numa perspetiva ética por diferentes autores. De facto, a lógica da vacinação está menos centrada no bem individual e mais focada no bem comum. Ou seja, na maior parte das situações, e ao contrário do que se passa com a maioria dos outros fármacos, eu sou vacinado para me proteger a mim e também para proteger os outros. Assim, no meu entender, e tendo em conta a situação de catástrofe/calamidade que este vírus nos impôs e continua a impor, não teria dificuldade em defender que a vacina deveria ser de carácter obrigatório. Estava eu a tentar construir a minha argumentação para esta premissa quando sou surpreendida pela notícia, passada em variadíssimos órgãos de comunicação social em todo o mundo, de que líderes católicos nos Estados Unidos, Canadá e Austrália solicitavam, através de uma missiva aos seus governos, que só financiem vacinas em que na investigação das mesmas não sejam usadas células provenientes de abortamentos electivos (a pedido da mulher).
A palavra aborto gela… No entanto, nesta situação torna-se urgente esclarecer devidamente do que estamos a falar.
Em algumas das vacinas que têm apresentado resultados interessantes, os genes virais, para produzir imunidade ao coronavírus, são colocados num outro vírus inofensivo. Esse novo vírus é então cultivado em linhas celulares que replicam o seu ciclo de vida.
Na maioria dos estudos são utilizados dois tipos de linhas celulares: células HELA e células HEK 293. Qualquer uma destas células são eticamente complexas na sua origem: as células HELA foram obtidas de um doente oncológico que vivia em situação de precária, sem o seu consentimento, e as células HEK 293 são provenientes de fetos humanos abortados electivamente nas décadas de 1970 e 1980. No entanto, a verdade é que hoje, estão transformadas em linhas imortalizadas, comercialmente disponíveis e usadas para a maioria da investigação e nos ensaios clínicos. As células HEK-293, por exemplo, são especialmente úteis para o desenvolvimento de vacinas, uma vez que são extremamente úteis no desenvolvimento de resposta imunológica. De facto, é seguro afirmar que a maioria dos medicamentos e tratamentos disponíveis tenham, em alguma fase de investigação, recorrido a estas células. As HEK 293, derivadas de abortamento electivos têm sido usadas para o desenvolvimento de vacinas, incluindo rubéola, varicela, hepatite A e herpes zoster e para o desenvolvimento de muitos medicamentos aprovados contra doenças, incluindo hemofilia, artrite reumatóide e fibrose cística.
Em 2005, a Pontifícia Academia para a Vida, do Vaticano, emitiu pareceres no sentido de considerar “se nenhuma alternativa estiver disponível e tendo em conta o risco à saúde pública, caso se opte por não vacinar, é aceite apesar das significativas reservas morais relacionadas com a origem das células usadas na investigação”. Reafirma, no entanto, que por questões de objecção de consciência se deve procurar soluções alternativas.
Assim, sabemos hoje que pelo menos 5 vacinas das 10 que têm apresentado resultados promissores usam ou usaram estas células durante as diferentes fases da investigação. Pugnar por alternativas é moral e eticamente legítimo, mas como reafirma o Vaticano na clarificação enviada ao recente artigo da Science, “Vatican approves of Catholics receiving vaccines manufactured using human fetal cells only in the absence of alternatives”.
Nesse sentido, apesar da ferida ética que uma vacina desenvolvida com estas células possa representar para os Católicos, penso que como Frei Bernardo Domingues nos ensinava temos que ser “Crentes e coerentes” e vacinar, vacinar, vacinar…maior ferida ética aconteceria se por nós, tantos outros pudessem ser expostos a uma doença com estas consequências devastadoras…