O padre Vitali suspira muito quando fala. Ganha balanço para as palavras que quer dizer, expressa-as com fervor, mas logo manifesta algum receio de dizer o que não deve. "Não sou uma pessoa de dar entrevistas", diz este padre ortodoxo ucraniano que, na verdade, fala torrencialmente e de forma muito expressiva.
Recebe-nos num pré-fabricado em Kramatorsk, que mistura as funções de capela, sacristia, escritório e despensa alimentar. "As grandes igrejas que vir por aí são todas do FSB", numa referência aos serviços de informação da Rússia e às ligações ao Patriarcado de Moscovo. "Eu estive lá , também pertenci à Igreja Ortodoxa Russa durante anos", justifica.
Vitali apresenta-se como o último padre ortodoxo ucraniano em Kramatorsk. "Todos os outros tinham filhos pequenos e a nossa liderança disse para não nos preocuparmos. O importante seria salvar as nossas vidas para depois reconstruir o que for necessário."
Mas Vitali ficou. Tinha ligações ancestrais a Kramatorsk e queria ir combater para a linha da frente. Ofereceu-se, com a mulher, para a Defesa Territorial, onde esteve seis meses em exercícios. No entanto, por razões que não aprofunda, decidiu que a melhor forma de servir o exército era assumir a função de capelão.
Um ortodoxo um pouco heterodoxo
No dia em que entramos na sua capela, a agenda do sacerdote não está especialmente carregada. "Só tenho um funeral civil, costumo ter dois a três por dia. Há muita gente das aldeias que está nos combates."
Diz que divide a zona com o Padre Konstantin, baseado em Kostyantynivka, cidade situada a 30 quilómetros e que representa o grande aglomerado urbano mais próximo de Bakhmut e aquele que poderá ser o alvo seguinte das forças russas, caso consigam progredir no terreno.
Quando lhe perguntamos que mensagens deixa aos soldados que vão lutar, Vitali surge com um discurso diferente do habitual para quem está comprometido na batalha pela Ucrânia. "Não lhe vou mentir. Digo-lhes a verdade e não me ponho com cenários na minha cabeça. Não sou como outros que começam com frases feitas e discursos cheios de pompa."
Vitali diz que há um problema burocrático com o enquadramento dos capelães nas forças armadas ucranianas - "estão colocados como condutores" -, mas não aprofunda muito o tema, talvez receando que esteja a falar demais.
A cada minuto da conversa, Vitali manifesta um discurso de inconformismo e até de alguma impaciência, como quando fala, por exemplo, do comportamento de alguns conterrâneos em tempo de guerra.
"Muita gente está a lutar em Bakhmut, mas essas pessoas não podem lá ficar baseadas e têm que vir para Kramatorsk. Ora, não podemos instalar os soldados num único local, como uma escola ou um edifício público, pois seriam facilmente visados pela artilharia russa. Por isso estou a tentar contactar pessoas que saíram de Kramatorsk e deixaram apartamentos vagos onde os militares podiam ao menos tomar um banho, comer e dormir. Mas há quem me responda que não, que a casa tem roupas caras guardadas, ou que os faqueiros são muito valiosos... não está a ser fácil!", conta o sacerdote da Igreja Ortodoxa Ucraniana na sua capela.
Sair, voltar, ter medo e esconder
Desde 2014 que Kramatorsk recebe provisoriamente a sede do poder ucraniano da província de Donetsk. O movimento, desde então, tem sido mais de saída do que de entrada, numa cidade sob fogo desde sempre na guerra pelo controlo do Donbass.
Os civis não escapam e, para que a memória não se esvaia na banalidade da guerra, há uma pequena lápide preta num dos cais de embarque na estação de comboios de Kramatorsk, que assinala uma tragédia que cumpre esta semana o seu primeiro aniversário.
Morreram 57 pessoas e mais de 100 ficaram feridas, quando dois mísseis atingiram uma zona onde centenas de pessoas aguardavam por um comboio que lhes permitisse a fuga aos combates .
Kramatorsk está agora a assistir a alguns regressos de habitantes locais. "Voltam, mas não há trabalho e, por isso, ficam quietos em casa", explica Vitali, enquanto escutamos o som dos bombardeamentos nos arredores da cidade, ao mesmo tempo que um alarme antiaéreo é desencadeado. É a banda sonora das ruas e avenidas de Kramatorsk, nunca se sabe onde e quando vai cair um míssil ou um engenho de artilharia.
"Só um doente ou um estupido é que não tem medo de estar em Kramatorsk. Quando começou a grande ofensiva, eu tive muito medo. Sabe que a 200 metros daqui houve um grande bombardeamento. Eu vim aqui à Igreja e estava tudo espalhado no chão. E nestes jardins aqui ao lado há prédios de cinco andares que ficaram sem telhado. Os bombardeamentos foram mesmo duros", revela-nos, enquanto escutamos os rebentamentos.
O padre ortodoxo ucraniano atravessa a cidade com cautelas para não ser detetado. Ao explicar a sua condição, troca os suspiros pela agitação e o discurso torna-se quase exaltado, ainda que ameno, a rematar a nossa conversa.
"A linha de frente fica a 23 quilómetros daqui. Podemos ser alvo de qualquer tipo de ataque de artilharia. Veja, quando me ligou eu estava em casa a usar o wifi, porque nem sequer posso ligar a internet móvel. Sabe, sou o único padre ucraniano em Kramatorsk! E não quero ser apanhado ou ser morto, porque sei que sou um alvo."