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A eutanásia representa um “retrocesso civilizacional” e o debate, ou a falta dele, é “uma corrida euforicamente precipitada”, afirma o arcebispo de Évora, D. Francisco Senra Coelho, em entrevista à Renascença.
A Conferencia Episcopal Portuguesa (CEP) manifesta o seu apoio à realização de um referendo sobre a legalização da eutanásia em Portugal. Há dias, o bispo do Porto, D. Manuel Linda, escrevia que “a vida humana nunca é referendável”. Face a isto, que leitura devem os cristãos fazer desta tomada de posição dos seus bispos?
Sem dúvida que a vida nunca é referendável. A vida é um valor absoluto que não pode ficar à mercê da decisão subjetiva de ninguém. A vida vale por si, mais, a vida têm uma dimensão tal, que vale a própria vida. Na nossa expressão cristã, dar a vida pela vida, é algo de maravilhoso e de belo. Sabemos que o Mestre que nós seguimos como senhor, Jesus Cristo, deu a vida, ofereceu a vida para que tenhamos mais vida.
O senhor D. Manuel Linda foi muito oportuno e muito claro ao dizer que a vida não é referendável. Não podemos pôr nas mãos de ninguém o futuro da nossa vida, se de facto eu tenho ou não direito a viver. Agora, o valor supremo da vida está aqui posto em causa, nesta atitude que eu considero improvisada, onde vejo com preocupação uma posição de superficialidade, de falta de aprofundamento, de falta de reflexão, de falta de maturidade no pensamento humanístico, antropológico e ético para se fazer, de facto, assim, numa corrida que diria, euforicamente precipitada, por aqueles que consideram este tema ou esta bandeira, como, enfim, coroa de glória.
Acho que perante esta atitude, nós devemos fazer tudo e usar todos os meios para defender a vida, para defender esta dimensão inviolável da vida. E um dos meios que temos ao alcance é apelar à sensatez do povo português e fazermos, de facto, refletir e termos oportunidade para sermos capazes de ir ao fundo das questões através de um referendo. Por isso, estou de absoluta consciência concordante com a CEP, neste manifesto hoje assumido, na sua reunião do Conselho Permanente, como pastor da Igreja de Évora, assumo solidariedade a posição dos meus irmãos bispos. É a oportunidade de amadurecermos, é oportunidade de refletirmos, mais e melhor, sobre tão importante decisão que não passa por uma questão de posição em assuntos banais ou fúteis, mas dimensões essenciais da vida, de antropologia e, no fundo, do nosso futuro.
A CEP aponta os cuidados paliativos como “a opção mais digna contra a eutanásia”. Quer isto dizer que a vida deve ser cuidada e respeitada até que termine naturalmente?
Há poucos dias, nas minhas visitas pastorais, encontrei-me com uma pessoa que estava a sofrer muito, em fase terminal e em situação critica. Essa pessoa já está sepultada e, na ocasião, dizia-me que tinha razões profundas no seu coração para abraçar aquele momento terminal da sua vida. E disse-me uma coisa que jamais esquecerei: “Se alguém me vir pedir a morte, o suicídio assistido ou a eutanásia, abracem-me. Abracem-me de um modo terno, carinhoso, com afago, pois isso significa que estou sozinho e fui abandonado. Ouçam, nesse grito, o meu sofrimento de solidão e de abandono”.
É essa dimensão que guardo. Nós não podemos dizer cuidados paliativos sem dizer humanização, sem dizer presença, sem dizer disponibilidade, sem dizer escuta, sem dizer olhos nos olhos e mãos nas mãos, sem dizer as palavras amor, gratidão, família. Não se trata apenas da administração de produtos que aliviem a dor. Também é necessária uma dimensão que a ciência é capaz de produzir e de proporcionar. Mas a questão fundamental de quem desiste de viver, tem a ver com a dimensão de sentir que não presta, que não faz falta, que já não conta para ninguém. Tem a ver com uma solidão e uma escuridão interior. Quando se deita a toalha ao chão é porque se desistiu de viver e isso é consequência de sentir que não faz falta.
Enquanto temos vida, temos missão. A própria dimensão da morte é uma dimensão de missão, é o dar a vida comprovando com a vida aquilo que se anunciou ao longo da vida. É neste momento que nós tornamos credível a vida que vivemos, ou seja, que confirmamos com a nossa coerência tudo o que dissemos com a nossa palavra. Viver até ao fim é, de facto, a grandeza que, quem está rodeado de amor, sente como um apelo. A morte, no fundo, é uma entrega da vida à fonte da vida. Não acredito que uma pessoa que seja amada, que esteja rodeada pelo carinho da sua família, peça para morrer por um método que pareça aliviar. Acredito que essa pessoa quer apertar a mão que sente apertada à sua, até ao fim.
D. Francisco, para as muitas pessoas que não sabem o que é ter amor, o que é ter afeto, qual é a solução?
A solução não é, seguramente, a morte. A solução é criar para essa pessoa, também, abraços. Essa é uma grande interpelação à Igreja e a todas as pessoas com dimensão humana e humanizadora. Pedir a morte é um ato de quem está depressivo e para quem se deve olhar com amor.
A Assembleia da República (AR) agendou para 20 de fevereiro o debate e votação de quatro projetos de lei com a finalidade de legalizar a eutanásia. Este é um tema que não esteve na primeira linha da campanha eleitoral dos diferentes partidos, nas últimas legislativas. Assim sendo, há muita gente que está agora baralhada e muito pouco esclarecida sobre o assunto. Na sua opinião, como pode a sociedade ser ouvida e, sobretudo, esclarecida?
A sociedade sente-se baralhada, pois confiou uma chave para que viessem a nossa casa cuidar de alguns temas, e agora percebemos que a nossa chave é usada para outras funções e operações, que não as que esperávamos ou imaginávamos. Efetivamente, este tema foi muito bem embrulhado, com uma dimensão sub-reptícia. Nós sabemos que quem se apresenta como defensor da morte, não é capaz de angariar a simpatia de um povo, não é capaz de somar votos. As pessoas esperam defensores de vida, de qualidade de vida, que nos proponham melhor vida. Não estão à espera que entre na nossa casa alguém que nos vem propor a morte. Aliás, nós evitamos passar pelos lugares de morte, circundamos por longe os cemitérios. Que me perdoem as agências funerárias e todas as pessoas que têm a ver com a morte. Não é que nós não precisemos dos serviços, e com muita gratidão usamos e ficamos eternamente agradecidos pela maneira como somos ajudados nessas horas, mas a nossa preferência é pela vida.
Nós somos da Primavera. Por isso, as pessoas que lidam com programas partidários para apresentar nos momentos próprios ao seu eleitorado, têm cuidado. Então, chegamos a fevereiro, ao dia 20, ainda no inicio de uma legislatura, e percebemos que uma das urgências máximas é a eutanásia, é o suicídio assistido. Evidentemente que a população cai em si, e percebe que a chave que entregou aos deputados, não era para abrir essa porta pois há portas muito mais urgentes.
Gostava, contudo, de salvaguardar todo o meu respeito por quem sofre, e gostava de dizer que estou perto, muitas vezes, do sofrimento, dada a minha missão de pastor. Ouço pessoas que me contam histórias tão fechadas, que a única atitude que eu tenho é de sentir com elas a angustia que vivem no momento. Quero, também, manifestar o meu respeito por quem está nesta questão com honestidade, por quem está na defesa da eutanásia e do sofrimento assistido, convictamente e, ao mesmo tempo, em gesto de promoção humana e de liberdade humana. Mas devo manifestar a minha discordância frontal, a certeza que tenho de que é um retrocesso civilizacional e que se trata de algo muito grave. Aliás, a sociedade nos momentos mais dramáticos da sua vida fez esta experiencia necrófila, da cultura da morte. E tudo tem a ver com uma sociedade que está doente, uma sociedade que se desencontrou com a alegria, o sentido, a dimensão da vida e encontra no horror, na monstruosidade, uma espécie de válvula para libertar as suas pressões interiores. Eu não julgo ninguém, pois como todos os seres humanos, partilho de debilidades, do medo e da incerteza, mas devo fazer a afirmação da vida.
E essa afirmação da vida, concretamente na arquidiocese, de que forma se vai fazer, tendo em conta o apelo feito às dioceses pela CEP?
Para já, apelo a todos os eborenses, a todos os diocesanos desta Igreja de Évora, para que no dia 19 de fevereiro, exatamente nas vésperas desta votação, pelas 19h15, se juntem na igreja do Espírito Santo, integrada no complexo da Universidade de Évora. Nós vamos ao coração do conhecimento, do saber, da ciência e vamos agradecer a Deus, através de uma eucaristia, o dom da vida. Eu gostava de fazer um agradecimento muito alargado a todas as pessoas que têm a ver com a vida.
Em primeiro lugar, a todas as mães, a todos os que fizeram tudo para sermos felizes, a todos os que trabalham na promoção da vida, a nível social, da formação, da educação, todos os que socorrem, todos os que trabalham no mundo da saúde, todos os que dão vida com mais qualidade às pessoas com deficiência, todos os que dão a vida no silêncio, na nobreza, no voluntariado, a todos, eu quero agradecer a Deus por esse dom da vida. Não vou estar, nesta eucaristia, numa atitude de condenação daqueles que apoiam a eutanásia. Vou rezar num louvor, por todos aqueles que apoiam a vida, e espero todos que venham rezar connosco. Acredito que a ampla igreja do Espírito Santo vai ser pequena.
Há outras iniciativas já pensadas?
Poderemos, entretanto, pensar noutras atitudes, sinais, outras iniciativas, talvez. Mas, para já, que seja inequívoco que a Igreja de Évora está com todos os que defendem a vida e com todos os que, por todos os meios, lutam para que não seja legalizada a eutanásia e o suicido assistido. Que não haja nenhum equívoco neste aspeto. Todos os meios são válidos, incluindo o referendo, por tratar-se de uma das formas de mostrarmos que é necessário refletirmos mais profundamente e ouvir o povo na sua dimensão genuína, de liberdade, de soberania e de direito de decisão.