Um cansaço extremo que se vai instalando, por vezes sem a pessoa sequer dar conta. Insónias de noite. Desmotivação para as tarefas mais simples. A cada pedido, a ansiedade cresce. A cada e-mail, o coração bate mais rápido. No limite, começa-se a cometer erros, o raciocínio começa a falhar e os colegas começam a falar entre si. Até que se chega ao fim da linha: o “burnout”, síndroma do qual se tem falado cada vez mais e que, segundo um estudo pioneiro realizado a nível nacional, chega a colocar em risco quase metade dos trabalhadores portugueses e que afecta directamente 17,3%.
A Margarida (nome fictício) trabalhava num ateliê de arquitectura quando decidiu começar a fazer um mestrado. Subestimou a exigência do curso e viu-se gradualmente atolada em trabalho, a tentar aguentar até ao final do primeiro semestre. Trabalhava 30 horas por semana, tinha aulas à tarde e ainda ia para casa estudar.
“Comecei a sentir um cansaço extremo, só que ao mesmo tempo o corpo começou a entrar num estado de adrenalina que não parava. Daí eu achar que iria aguentar, parecia uma máquina. Mas eu não conseguia parar”, descreve a arquitecta de 33 anos. Na altura a viver em Lisboa, Margarida chegou a um ponto em que teve de parar. Vive agora com os pais no Algarve: há mais de um ano que tenta recuperar de uma situação da qual nunca tinha sequer ouvido falar.
Antes do “burnout”, foi tentando varrer o cansaço para debaixo do tapete. “Fui deixando de funcionar aos poucos.” Havia noites levadas a trabalhar em que pensava: “Já é hora de parar, mas vou só fazer mais um esforço”. Mas esse empurrão extra acabava por ultrapassar a última fronteira do sono. E Margarida deixou de dormir.
“Chegou a uma altura em que levei dez dias seguidos sem dormir”, conta. Quando chegou ao trabalho, o chefe achou-a “esquisita”, e quando soube das insónias, foi o primeiro a dizer: “É melhor ires para casa.”
A descrição é de um quadro típico de “burnout”, explica João Paulo Pereira, especialista e autodenominado “activista” dos riscos psicossociais, autor do estudo que inquiriu quase 40 mil portugueses entre 2008 e 2013. “É um fim de linha”, descreve.
É um processo que, no início, se caracteriza por algumas reacções “menos naturais” no comportamento de uma pessoa. Sente falta de recompensa – no rendimento, no reconhecimento do trabalho. Pode sentir “incongruência entre os valores da pessoa e aquilo que entende serem os valores da instituição em que trabalha”.
Há também a “falta de energia que começa a invadir a pessoa, que automaticamente coloca-a com menor disponibilidade para o exercício de tarefas” ou mesmo a perda de prazer naquilo que se está a fazer.
Passando pelo stresse, pela ansiedade e finalmente pela depressão, o “burnout” é um quadro clínico que incide fundamentalmente na “percepção de cada um sobre aquilo que faz”, sublinha João Paulo Pereira.
“Não consigo dar nem mais uma hora”
Foi essa sensação de não ser capaz que fez com que Fernando, um advogado de 34 anos a trabalhar numa reputada empresa em Lisboa, entrasse um dia no gabinete dos sócios do escritório para dizer que não aguentava nem mais um minuto.
“Há um dia em que me pedem uma coisa relativamente simples e eu penso ‘Já não consigo mais’. Lembro-me de começar a chorar, de preocupado, nervoso, e depois fui a casa, disse à minha mulher: 'Sinto que bati no fundo, não consigo dar nem mais uma hora para isto'”, conta.
O advogado, que trabalhava já há vários anos no mesmo escritório, não sentia que fosse uma pressão vinda de cima, mas mais uma pressão que colocava sobre si próprio “para fazer as coisas bem e cumprir os objectivos”.
Num sistema “up or out” (o funcionário tem obrigatoriamente de subir na carreira ou então procurar outro emprego), as avaliações são periódicas e há etapas para cumprir a cada número de anos. O percurso está definido desde o início. A meta final: chegar a sócio.
“Há pessoas que não se adaptam”, diz Fernando. “É um estilo de vida, não vejo isso de forma dramática”, argumenta, embora o ritmo o tenha mesmo chegado a obrigar a parar. Na altura, recorda, foi um “cocktail” de vários factores – a equipa com a qual trabalhava saiu da empresa, estava a meio de uma das etapas importantes para passar ao próximo escalão e sentia-se esmagado com a ideia de que teria de substituir os colegas que saíram.
“Sentia os holofotes todos sobre mim, e ao mesmo tempo o escritório muito elogioso: ‘Estamos a contar contigo, vais fazer o papel destes tipos, eles não vão fazer falta nenhuma’”, o que ainda pressionava mais. Teve de interromper as férias para tratar de uma operação – uma ocorrência comum em advocacia, diz – e depois o trabalho acumulava com as lides domésticas.
Nesse ano, a mulher ficou à espera da segunda filha meses depois do nascimento na primeira. Era uma gravidez de risco, que obrigou a mulher a ficar deitada. “Era uma loucura. Saía do escritório, porque tinha de ir buscar a minha filha, ia a casa, dava-lhe banho, jantar, deitava-a e depois ainda voltava para o escritório, e pelo meio tinha chamadas e reuniões. Tinha de ser advogado a tempo inteiro e dono de casa a tempo inteiro”, descreve.
Até ao dia em que quebrou. Felizmente, o escritório foi compreensivo. Mandaram-no para casa descansar. Quando voltou, teve de escrever uma lista das coisas a mudar para poder trabalhar de uma forma mais saudável, como não olhar para o telemóvel à noite ou trabalhar textos com o Outlook e o telefone desligado. “Foi identificar onde estavam os focos de ansiedade e tentar eliminar.”
Hoje a empresa tem vários mecanismos, como o “coaching”, para lidar com o problema, até porque Fernando não é, nem por sombras, um caso isolado. “Aqui o fenómeno do ‘burnout’ vai acontecendo com alguma frequência”, revela. E enquanto não se chega ao limite, há muitas dúvidas: “É muito normal, pelo menos uma vez por ano, um advogado ter um momento de crise vocacional”.
Por isso, explica João Paulo Pereira, se fala hoje em “organizações saudáveis”. Não porque não têm também casos problemáticos entre os funcionários, mas porque “têm meios de detecção mais precoce destas circunstâncias, e, ao detectá-las, actuam”.
Mesmo quando há crises, diz Fernando, há formas de relativizar o problema. “Olhas para o lado e vês os médicos que também têm de fazer bancos, a malta que trabalha nas consultoras. Faz parte”, constata.
O “burnout” é um fenómeno transversal. Abundam em Portugal, e no resto do mundo, teses de doutoramento sobre a incidência entre os polícias, os professores, e sobretudo os profissionais de saúde.
Medicina de guerra. “Uns são mais fortes, outros não resistem”
O médico Carlos Cortes, presidente da Secção Centro da Ordem dos Médicos (OM), começou a notar um padrão entre os colegas e decidiu investigar mais fundo. Fez-se um grupo de trabalho alargado para preparar um estudo aprofundado sobre o “burnout” entre os médicos da região. Oito mil médicos foram sondados, mais de 1.500 responderam, uma amostra significativa. Mas o mais interessante foi o processo preparatório, em que se fizeram dezenas de visitas e reuniões pela região. A resposta foi surpreendente.
“Foram sempre reuniões com uma participação acima daquilo que era esperado. Recordo-me de uma onde talvez estivesse presente na sala 70% do corpo médico, ou mais, daquele centro hospitalar”, conta Carlos Cortes.
Além do número, foi o conteúdo das próprias reuniões que impressionou a Ordem dos Médicos. “Foram reuniões com uma grande carga emocional dos médicos que contaram as suas histórias, os seus desabafos”. As emoções contaminavam os colegas presentes na sala.
Os casos são muitos e sintomáticos de um Sistema Nacional de Saúde (SNS) a braços com cortes financeiros, a falta de recursos humanos e materiais e a dificuldade em levar as pessoas a aderir às consultas, fruto da crise económica.
O dirigente da OM constata que “há aqui um paradoxo muito grande”: “aquilo que foi ensinado aos médicos durante toda a sua vida – dedicar o melhor de si aos seus doentes – enfrenta duas lutas. Não só a de procurar a melhor estratégia terapêutica, mas depois ter que ter os exames complementares à sua disposição, de ter de ter medicação; uma série de adversidades para as quais a sua formação não os preparou”.
Como uma médica que chorou em frente a dezenas de colegas ao relatar a pressão a que era sujeita dia após dia, “uma pressão velada, indirecta, escondida, feita na sombra sobre os médicos para produzir”, descreve Carlos Cortes. Os hospitais em Portugal são financiados segundo o número de consultas e cirurgias que conseguem apresentar.
É um paradoxo que, muitas vezes, conduz à síndroma de “burnout”. Fala-se em medicina de guerra: alguns são mais fortes e resistem, outros não conseguem. E, numa primeira fase atribuindo os sintomas à carga de trabalho, eles insistem em aparecer na mesma. Vómitos, diarreia, insónias – sintomas que não são exclusivos ao “burnout” nos médicos.
“Cada vez que toca o telefone, treme-se dos pés à cabeça”
“Quando via a luzinha do [smartphone] BlackBerry a piscar, sentia o ritmo cardíaco a acelerar”, conta Fernando. Na fase mais apertada do trabalho, chegava a acordar a meio da noite com calores, vomitava de manhã, “tinha uma tosse que depois percebi que era nervosa... Não sabia para onde me havia de virar.”
O especialista João Paulo Pereira aponta que “dos piores elementos a que uma pessoa numa situação limite” pode estar exposta, por risco de consequências psicossociais, “é um telemóvel e um computador”. Cada vez que toca, a pessoa treme dos pés à cabeça, há uma reacção emocional de ansiedade – 'O que é que aí vem?' – porque quer estar desligada”, explica.
A Margarida, a arquitecta, os sintomas foram-na invadindo e ocupando espaço até já não haver espaço para mais nada. Tinha, e continua a ter, náuseas ao olhar para ecrãs, não consegue olhar para um telemóvel nem para um computador, muito menos para uma televisão. Sofreu de dismnésia, pequenas amnésias ao longo do dia em que se chegou a perder na sua própria cidade. “Foi como se fosse uma cidade que nunca tivesse visto. Não reconhecia nada”, recorda. Perdeu vocabulário, não conseguia seguir conversas. “Não conseguia ler de todo.”
João Paulo Pereira refere as consequências desse tipo de respostas ao nível do grupo de amigos e da família, a quem “vai custar acreditar, assumir ou viver com alguém que tinha um determinado funcionamento e de repente fica com uma memória a curto prazo quase zero”.
Não é impossível apagar o fósforo antes de queimar até ao fim. Há indicadores aos quais estar atento. Nas mulheres, por exemplo, os primeiros sinais são as lesões músculo-esqueléticas, dores na cervical ou na lombar, por causa das alterações de postura. Nos homens, são as doenças do foro cardíaco, arritmias ou mesmo sintomas de enfarte que se revelam afinal manifestações de ansiedade profunda.
Ou mesmo a auto-estima. “É um botão que se desliga de repente”, recorda Fernando. O advogado lembra que, mesmo confrontado com as tarefas mais simples, pensava: “Não sou capaz, já não sei fazer isto. Punha tudo em causa.” Para Margarida, o caso foi diferente. De tal maneira que teve algumas dificuldades em conseguir o médico certo, o diagnóstico correcto e o tratamento adequado.
“Os primeiros médicos diagnosticaram-me ‘burnout’, depois houve médicos que disseram que isso não existia, que podia ser depressão, e expliquei que não sentia o factor tristeza ou a falta de motivação”, relata. “Eu estava motivada para tudo. Não conseguia era parar.”
A arquitecta começou por ir à médica de família, que se confessou de imediato como leiga no assunto, e dirigiu-se depois à Clínica do Sono para tentar tratar as insónias. Rapidamente criou habituação aos medicamentos e, um ano depois, continua sem conseguir estabilidade no sono. Acompanhada hoje por uma psiquiatra, começou a virar-se também para as medicinas alternativas para procurar algum alívio das insónias que teimam em aparecer.
Cinismo alto, realização baixa e cansaço elevado
“Hoje a medicina nada tinha a ver com a medicina de antigamente”, declarava um médico numa das reuniões promovidas pela OM. O trabalho hoje, mesmo com todos os avanços científicos e tecnológicos, não traz os frutos de há uns anos, dizia – um factor de desmotivação. Este médico sentia que não contava para o sistema.
Carlos Cortes sublinha que há mesmo colegas que saíram do SNS por “terem a sensação de todos os dias estarem a lutar contra a adversidade”. Um médico contava que, apesar de ter grandes responsabilidades no hospital onde trabalhava e de estar numa trajectória profissional ascendente, cada dia era “um dia negro, porque não sabia se ia ter profissionais suficientes para poder operar um doente que já estava marcado, porque não sabia se no bloco ia ter condições materiais para operar”.
A saída deste médico, considera o dirigente da OM, até pode ter sido uma estratégia de prevenção do “burnout”. Explica João Paulo Pereira que esta síndrome é dependente de três factores: “a realização pessoal, a exaustão, e o cinismo”. “O que tem que acontecer para existir 'burnout'? Tem que haver um cinismo elevado, uma realização baixa e um cansaço elevado”, sintetiza.
O médico Carlos Cortes recorda ainda outro caso. Uma colega, dirigente num centro de saúde, tinha imensas dificuldades em lidar com a burocracia e passava a semana toda a ler documentos, a tentar perceber o que é que estava por trás de todas aquelas instruções de trabalho, daqueles diplomas legais e procedimentos. Acabava por não estar com os doentes.
Professores e polícias no limite da exaustão
Numa investigação promovida pelo Instituto Superior de Psicologia Aplicada (ISPA), concluiu-se que 47,8% dos médicos e enfermeiros apresentavam níveis de “burnout” elevados e que 21,6% exibiam sintomas moderados da síndrome. São dois terços dos profissionais inquiridos numa amostra muito alargada: 1.262 médicos e quase 500 médicos.
Não são os únicos afectados: um outro estudo do ISPA realizado com cerca de mil professores de escolas portuguesas revelou que 30% dos docentes estavam em “burnout”, emocionalmente exaustos e sem qualquer sentimento de realização profissional. A maior parte dos que apresentam sintomas são mais velhos, têm vínculo à função pública e dão aulas no ensino secundário, concluiu-se.
Uma investigação apresentada em 2015 dava também conta dos riscos de exaustão física e psicológica dos polícias: apesar de apresentarem bom estado psicológico no primeiro ano de serviço, à medida que vão para o terreno registam mais problemas, que no limite podem levar ao suicídio, alertava uma investigadora da Universidade do Porto.
O “burnout” acontece, por norma, a meio da carreira, entre os 10 a 15 anos de actividade e não se nota no fim da carreira, porque chegam ao fim da linha, muitos mudam de profissão.
Nos últimos anos, Portugal viu passar o Ano Europeu dos Riscos Psicossociais e também o Ano Europeu do Stress. “Ciclicamente”, critica João Paulo Pereira, “dizemos: 'Ai! Os dados do ‘burnout’ são muito preocupantes!’”. “Mostramos estatísticas de stresse, de absentismo, mostramos o preço que custa isto tudo, continuamos alarmados, mas a gostar imenso de ver aqueles números.”
Mas depois não se faz nada, acusa, e o número de casos vai subindo. “As pessoas ainda estão a actuar no paradigma do trabalho segundo modelos anteriores, e não se adaptaram”, considera o especialista.
Para Fernando, “as pessoas perderam a noção da razoabilidade”. “O e-mail veio impor um ritmo, sobretudo a um advogado, louco. Antigamente, negociavas o contrato, seguia por carta ou fax, escrevias à mão, devolvias, tudo aquilo demorava imenso tempo.” Agora, conta, facilmente lhe cai no colo um contrato de centenas de páginas com um pedido para receber resposta no dia seguinte. E a concorrência não ajuda: se recusar, o cliente vai à firma do lado sem pensar duas vezes.
Marcar o ritmo e intervir a tempo
“É muito importante marcares o ritmo, correndo o risco de no fim dizeres, com esses limites, não estou disponível. Isso é preferível, estando feliz e bem com a tua consciência, do que estares aqui três anos a sentir que estás a ser explorado e sem reagir”, conclui o advogado.
O psicólogo João Paulo Pereira frisa que é possível intervir com resultados. É um desafio, mas a questão essencial é que o “burnout” “não é de todo uma situação de que as pessoas se tenham de redimir”. Vai passar-se um tempo complexo, mas depois existe a hipótese de a pessoa perceber porquê e de se reorganizar.
A vida intensa no ateliê, as madrugadas a fazer maquetes e as noites sem pregar olho ainda surgem de tempos a tempos na memória de Margarida. Hoje, os dias são passados a tentar não contar o tempo. Faz caminhadas na praia, actividade que não exige grande esforço intelectual nem físico.
Tem havido uma evolução, mas muito lenta. “Muitas vezes é um desespero, porque há certos dias em que pensa se realmente se vai voltar a estar normal”, confessa. “Sinto-me muito aquém.”